Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre - 10ª edição | Page 116

LiteraLivre Vl. 2 - nº 10 – Jul/Ago. de 2018 Pássaro Azul Regina Ruth Rincon Caires Araçatuba/SP Talvez o desconforto tenha começado no momento em que chegara ao mundo, quando aquela invasiva claridade do holofote, na sala de parto, acertou o seu olhar, impiedosamente. Acho que foi ali, ou em qualquer outro lugar. A única coisa que sabia era que havia um desconforto, um descompasso. Nascera diferente. Di-fe-ren-te: palavra estigmatizante, um codinome que ecoou nos pensamentos durante seus inocentes nove anos. Reiteradamente dita, parecia gravada nos lábios que lhe falavam, nos olhos que lhe fitavam, nos gestos de espanto que lhe dirigiam. E, ironicamente, ele não falava. Ouvia silenciosamente, mudo. E, por ser assim diferente, gozava de certas regalias. Não lhe cabiam tarefas, era livre. Se é que é possível ser livre dentro do alcance das vistas de adultos. E sua cabeça voava, gostava de voo. O carrinho não era conduzido na pista desenhada do brinquedo, o trenzinho não corria nos trilhos. O fascínio estava no girar das rodas, no girar das hélices, no girar, girar. E no voar. Os carros voavam no ar, os trenzinhos, os aviões, os helicópteros, tudo suspenso nas mãos, tudo fazia parte da revoada circular. Tinha alma de pássaro. Companheiro inseparável do pai, diariamente fazia o curto trajeto de entrega das verduras e legumes, da fazenda até a cooperativa. Saíam antes de o dia amanhecer, e cruzavam o vale quando o sol começava despontar. Era o momento mágico. O paredão de pedra que se desenhava ao fundo, negro, apinhado de ninhos de aves gigantescas, era o palco do espetáculo de todos os dias. O cenário enquadrava o alto do penhasco e um precipício gigantesco. Seguindo o ritual, o pai desligava o carro, abria a porta para que o filho saísse e pudesse acompanhar a magia. Lá, no pico do desfiladeiro, as aves lançavam-se no precipício, e davam a impressão de que cairiam verticalmente rente ao penhasco, em linha reta, e, num átimo, em questão de segundos, as enormes 111