LiteraLivre nº 7 – janeiro de 2018
Cena Doméstica
Ricardo Ryo Goto
São Paulo/SP
Para Charles Kiefer
“Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço” -
Romanos, 7:19
“Homo homini lupus (o homem é o lobo do homem)”- Plauto
-Se latir, apanha !
Os velhos escutaram os ruídos do portão se abrindo e o andar trôpego,
antecipando a chegada do filho mais novo.
Não obstante a advertência da mulher (só queria evitar maiores
desavenças), o pequeno cão -um poodle branco de mais de 10 anos – investiu
contra o recém-chegado pulando até a altura dos joelhos, rosnando
furiosamente, mordendo-lhe uma das mãos.
-Se entrasse um ladrão ele o receberia de braços abertos, quieto e
amigável – emendou o pai, ironicamente. Então não era aquele ente um ser
estranho, um intruso?
Mas o animal apenas reagia aos humores dos seus convivas. O rapagão,
que vez ou outra adentrava a casa dominado pelo efeito da “erva”, mesclava
atitudes eufóricas e brincalhonas com lapsos de agressividade traduzida pela
verborragia mais infame e descarada possível, cada vez mais violenta:
-Sai prá lá, cão do inferno – resmungava Diogo com a voz pastosa e
reticente, enquanto desferia-lhe um pontapé, retribuindo-lhe a mordida.
Depois de totalmente humilhado, o lulu resignou-se a deitar sobre o pano
sujo que lhe servia de cama num canto da sala.
A mulher, antes absorta num vago tricotar, lembra-se quando o mascote
chegou ao lar, comprado num “pet shop”, com o status de “melhor companheiro”
do caçula, verdadeiro membro da família, presente de aniversário dos 6 anos.
“Totó, você vai ser meu maior amigo de hoje em diante.”- dizia o garoto,
confiante nessa ingênua promessa de infância.
Se os amigos servem para nos estimular em nossos bons projetos e
também para nos alertar quando agimos injustamente, então sim, ele era seu
melhor amigo, ainda. Afinal, alguns animais domésticos são capazes,
normalmente, de detectar a presença de espíritos e pressentir situações
perigosas.
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