LiteraLivre nº 2
vagas cuidando dos judeus irmãos, tão desgraçados quanto eu.
Nunca mais vi meus familiares. Guardo a expressão de terror de
meu pai e o último olhar de minha mãe na janela do trem, naquela tarde
cinzenta e chuvosa. Só eu fiquei em Auschwitz, papai partira na morte
trágica e minha mãe e meu irmão para o desconhecido sem volta.
Fazia frio naquela tarde de New York. Um frio parecido com o do sul
da Polônia, onde vivi o meu martírio. Não sei se por sorte ou por azar,
tinha boa saúde e venci o holocausto. A última resma autoritária da
guerra havia caído. Os Portões de Brandemburg estavam abertos e os
alemães poderiam transitar nele livremente.
Estava na América tantos anos depois. Celebrava a alegria de estar
viva, de ter vencido Auschwitz mas chorava a tristeza de ter perdido
tudo: a família, a casa, a profissão, Nick e todos os meus pertences.
O führer havia tombado, a guerra havia acabado e as feridas ainda
estavam abertas e sangravam muito. Vivi meus últimos dias na Polônia.
O vestido de noiva, dependurado na vitrine levava-me à mocidade
perdida e aos meus anos de tranqüilidade junto de minha família. Hoje,
o importante é lutar por um mundo melhor, longe das atrocidades do
período do 3º Reich, o maior pesadelo da história do sáculo vinte.
Escrevo muito. Minha raça judia leva-me a escrever sobre a guerra, a
Polônia e o nazismo, numa forma de desabafo onde posso encontrar a
paz depois de muita tempestade.
Passava distraída por uma avenida de intenso movimento vendo as
vitrines iluminadas. Súbito parei. Em minha frente um templo aberto
cheio de fiéis entoando cânticos de suave melodia. Senti-me arrastada
para aquele local. O reverendo cantava e orava. Era um culto de
adoração a Deus. Pude então perceber que ali havia muita paz. Cheia de
alegria encontrei após tantos anos o momento oportuno para uma
oração de gratidão. Gratidão pela vida e por ter superado a tantas
atrocidades raciais e estar ali, chorando e dando vazão à espiritualidade
que me tomou por inteiro. Senti-me curada das lembranças amargas,
das dores sofridas e, sobretudo da revolta! Dentro de mim não havia
mais a velha mulher judia que odiava seus algozes e ruminava rancores.
Uma nova mulher nascia para a vida plena naquele lugar santo. Entoei
meu cântico alvissareiro, a graça que me invadiu não tinha explicação,
nem preço. Era manifestada a graça que descia do Senhor.
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