Revista LiteraLivre 2ª Edição | Page 39

LiteraLivre nº 2 Ela sabia que a comida estava sempre boa. Nunca faltou sal e nem sobrou. Nunca errou a mão em nada. Ali estava o amor mais saboroso que uma criança poderia receber. Era uma cumplicidade de afetos tamanha que espantava qualquer insegurança, qualquer medo, qualquer tristeza. Era um porto seguro. Com o passar do tempo, fui percebendo que naquela divisão faltavam partes. Havia mais dois amores a serem colocados ali, no meu prato. Meu irmão e minha irmã. Então, sem alarde, comecei a repartir as porções do pai e da mãe, de modo a serem quatro. Ali estavam os dois que faltavam. E ficava feliz assim... Fiz isso por algum tempo sem ser notada. Quero dizer, pensando não ser notada. Imagina se isso seria possível! Nada escapava da tenência sempre zelosa da avó. E um dia, enquanto eu multiplicava as minhas divisões, ela aproximou-se de mansinho e, com aquele olhar que jorrava ternura, me disse: - Existem outros amores, não é mesmo, menina?! Depois do susto, sentindo o afluxo do sangue ruborizando o meu rosto por perceber que ela havia descoberto o meu feito, e não querendo que ela se sentisse afrontada pela minha iniciativa, prontamente coloquei-me de pé. E ela, no intuito de me tranquilizar, passou as mãos pelos meus cabelos, e com a maior serenidade do mundo, me disse: - Ao longo da vida, minha neta, você irá encontrar muitos amores. Alguns serão somados, outros nascerão... Serão tantos, mas tantos, que não caberão nem no maior prato do mundo! E ela estava com a razão... 33