LiteraLivre nº 2
Ela sabia que a comida estava sempre boa. Nunca faltou sal e nem
sobrou. Nunca errou a mão em nada. Ali estava o amor mais saboroso
que uma criança poderia receber. Era uma cumplicidade de afetos
tamanha que espantava qualquer insegurança, qualquer medo, qualquer
tristeza. Era um porto seguro.
Com o passar do tempo, fui percebendo que naquela divisão faltavam
partes. Havia mais dois amores a serem colocados ali, no meu prato.
Meu irmão e minha irmã.
Então, sem alarde, comecei a repartir as porções do pai e da mãe, de
modo a serem quatro. Ali estavam os dois que faltavam. E ficava feliz
assim...
Fiz isso por algum tempo sem ser notada. Quero dizer, pensando não ser
notada. Imagina se isso seria possível! Nada escapava da tenência
sempre zelosa da avó. E um dia, enquanto eu multiplicava as minhas
divisões, ela aproximou-se de mansinho e, com aquele olhar que jorrava
ternura, me disse:
- Existem outros amores, não é mesmo, menina?!
Depois do susto, sentindo o afluxo do sangue ruborizando o meu rosto
por perceber que ela havia descoberto o meu feito, e não querendo que
ela se sentisse afrontada pela minha iniciativa, prontamente coloquei-me
de pé. E ela, no intuito de me tranquilizar, passou as mãos pelos meus
cabelos, e com a maior serenidade do mundo, me disse:
- Ao longo da vida, minha neta, você irá encontrar muitos amores.
Alguns serão somados, outros nascerão...
Serão tantos, mas tantos,
que não caberão nem no maior prato do mundo!
E ela estava com a razão...
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