Revista LiteraLivre 2ª Edição | Page 38

LiteraLivre nº 2 DOS AMORES DIVIDIDOS E MULTIPLICADOS Regina Ruth Rincon Caires Campinas/SP Arroz, feijão, mexido de ovo e farofa de torresmo. Tudo misturado, amassado. Isso era feito dia após dia, sempre nos mesmos velhos e descascados pratos de ágate. Cada neto era servido com esse manjar dos deuses, carinhosamente temperado de generosidade, doação, amor. A avó compactava a comida no círculo central de cada prato, borrifava algumas gotas de limão-cravo, e com a lateral do garfo fazia uma cruz no centro, dividindo a porção em quatro partes. Dizia que cada parte era dedicada a um dos quatro grandes amores da vida: mãe, pai, avó e avô. E, comprometidos com esses amores, cada um de nós escolhia a parte mais amada para iniciar a refeição. Quase sempre a sequência lógica prevalecia: mãe, pai, avó e avô. Raras vezes essa harmonia era quebrada, e quando isso acontecia nem precisava investigar: havia uma surra atrelada a isso. Uma surra dada ou uma surra prometida. Se bem que isso era muito particular. Se havia alguma inversão, ninguém comentava. Acontecia dentro das cabecinhas. Sei que acontecia isso porque inverti algumas vezes. Enquanto comíamos, a avó, de longe, sempre atarefada com a lida da casa, cautelosamente controlava a nossa alimentação. Era comum ouvir: - Quem já comeu uma parte? Didi, você está sem fome? Lúcia, a comida não está boa? Faltou sal? 32