Revista LiteraLivre 19ª edição | Page 55

LiteraLivre Vl. 4 - nº 19 – Jan./Fev. de 2020 — Matilde, conforme combinamos ontem, hoje vamos assistir à entrevista do presidente, né? — Você está enganada, Joana, nós não conversamos ontem, eu nem me recordava dessa entrevista. — Conversamos sim, mas tudo bem, a correria do dia a dia nos causa esses lapsos mesmo, mas te espero hoje à noite, então, as 20 horas, ok? — Combinado. No horário combinado, Matilde não apareceu . Nem naquele dia, nem em outros combinados. Pequenos lapsos tornaram-se perdas constantes de memória ,dificuldades na realização de atividades rotineiras, descontrole de emoções . Assim, houve o encontro entre Matilde e aquela estranha senhora , que hoje habita seu ser. O entusiasmo de uma mulher livre e autoconfiante , que lutava por seus direitos, deu lugar a uma jovem senhora amedrontada, cuja única luta era a de poder brincar com as crianças na rua. Tornou-se uma criança, com o olhar mais puro que eu me recordo ter visto; ao mesmo tempo em que ansiava por atenção, fixava-me os olhos suplicantes em busca de respostas. Eu não as tinha. Quisera eu dizer-lhe: Matilde, minha mãe, se esforça, reaja, tente encontrar a mulher forte, culta e independente, ela está aí, resgate-a. Você é mais forte do que essa terrível doença. Em vão, eu tentava. No entanto, ela simplesmente me abraçava, com os olhos ternos de uma criança. Nada compreendera do que eu dissera, sequer me reconhecia, tampouco a ela mesma. Perdemos a batalha, mas não a docilidade dessa estranha senhora, que se rompeu totalmente de Matilde. Com os olhos a esmo ,fitava-me gentilmente, na tentativa de uma aproximação, tal qual uma criança quando procura fazer amizades. Eu era uma estranha, ela era uma desconhecida, e juntas, dia após dia, tornávamos amigas, a cada dia como se fosse o primeiro. Lembro-me de ouvir algumas vezes que “podem nos tirar tudo, menos o conhecimento”. A terrível doença de Alzheimer veio para nos provar o contrário: podem nos tirar tudo, inclusive o conhecimento. [52]