Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 98

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Iris Franco Diadema/SP A Ceia Raul encostava a cabeça no vidro da janela com moldura de madeira, o ar quente da boca brigava com a gelidez do lado de fora da casa. O garoto olhava admirado os flocos de neve que desciam do mais longínquo canto do céu anunciando uma nova era de bons tempos. Amava o final do ano, por mais que os caminhos fossem intrincados até dezembro, no Natal uma leva de esperança invade o coração até mesmo das pessoas mais carrancudas, como se realmente houvesse um espírito que sussurrasse para deixarem os problemas para trás porque a vida era mais, mas só é possível descobrir este algo escondido com os pés no presente e fé no futuro. Após cansar de escrever frases sem nenhuma conexão com nenhum contexto no caderno vítreo, foi se admirar no espelho. A mãe colocara uma camiseta de tricô costurada pela avó, receita certa para ser motivo de chacota dos primos, apesar de ter 10 anos, parecia que ninguém da casa o encarava como um homem. Ou, pelo menos tal qual um pequeno grande homem. Contudo, em algum canto, entre a ansiedade de crescer e angústia de nunca mais ser criança, sabia que aquele momento era único, porque quase nenhum adulto ganhava presente nesta data. Parecia que todas as pessoas grandes estavam interessadas somente em fazer promessas (jamais cumpridas nos anos anteriores) e destilar venenos sobre a conduta inadequada de algum vizinho/parente inconveniente. O cheiro de comida invadia o quarto dele. Na tradição familiar, a mãe prepara o peru, enquanto a tia Geni leva o arroz à grega, tia Doca faz um feijão (mais cheio de linguiça do que de feijão propriamente dito) e tia Tuca cuida da gelatina colorida. Todo o cenário rodeado pelos oito primos, dos avós (os quais competiam entre si para saber quem era o mais doente ou qual deles tinha mais [95]