LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
ouviu de longe o estalido da faca encontrando o chão. “Meu Deus!”. Como um
tufão logo veio a recordação de outras tantas agressões, o que a impulsionou.
Retomando a faca, dilacerou os membros inferiores do morto. Agora não podia
mais parar. Esqueceu-se da música, que já não tocava mais, esqueceu-se de
onde estava, esqueceu-se de todo o autocontrole que fora obrigada a adquirir
todos aqueles anos. Se encheu de coragem e foi adiante. No melhor estilo
maníaco assassino hollywoodiano perfurou todo o tórax do morto. Extravasou
soltando curtos gritos fadigados. Depois de absolutamente desfigurar o tórax,
Isabel parou, com dificuldade, controlou a respiração. Sentindo o suor brotar,
esfregou as costas da mão esquerda no buço. Aprumou os cabelos e limpou com
o antebraço direito a testa molhada. O vestido ensopado tornara-lhe uma
segunda pele. Mirou os olhos desfalecidos, com a faca fortemente cerrada nas
mãos, sem pensar duas vezes decapitou o morto.
Jogou a faca longe e caiu intrépida sobre uma cadeira. Ficou paralisada por
volta de meia hora, quando foi despertada por alguém que entrava na cozinha.
O homem ficou atônito ao se deparar com a cena instaurada. Os olhos
esbugalhados, ora em Isabel, ora nos pedaços sobre a mesa.
— Desgraça! O que você fez com meu leitão, sua diaba?! Era pra fazer
assado.
Cipriano, enfurecido, bradou com Isabel, que zonza se levantava da cadeira,
para logo ser atingida com um soco na boca do estômago. As vistas lhe faltaram,
as pernas bambearam, mas se equilibrou na mesa, pondo para fora algo que
tinha bebido mais cedo. Do porco desfigurado sobre a mesa nenhum nojo; ao
marido, olhares de repugnação. Com dores, motivou a si mesma, reconhecendo
já ter sobrevivido a sovas piores erguendo o corpo com cautela.
— Agora vá providenciar fazer outra boia pr’eu armoçá.
A imagem dos beija-flores irrompeu seus pensamentos. Desde então Isabel
encontrou resignação ao ceifar o marido a cada frango tratado, ao preparar um
assado de porco ou um corte de boi.
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