LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
“Devem ter sido uns cinco anos pra começarmos a notar que eu não pegaria
barriga. Se tivesse o poder de prever o futuro, tardaria o quanto pudesse a ida
naquele doutor. Mas a ansiedade era grande, não é?! Com você não havia
problema algum. O ‘defeito’ estava em mim. Por algumas baboseiras explicadas
pelo tal doutor, eu provavelmente não poderia ter filhos”. Desde a última ida ao
médico, a mulher, não se esquecera da cara do doutor. Recordava-se das
bochechas rosadas, adornando a boca que lhe anunciara um fiapo de esperança.
Haveria uma remota possibilidade, caso ela fizesse um tratamento. Depois, era
tomada pela lembrança dos olhos fundos, impiedosos, escondidos atrás dos
óculos fundos de garrafa, desadornando a boca que sem saber anunciara-lhe o
seu martírio.
Isabel fechou o álbum de fotos e o jogou no chão. Foi até o toca-fitas, já
silencioso, voltou à fita, colocando para tocar outra vez a música. Em seguida
andou em direção a pia. Abriu o armário, pegou uma faca de cerâmica e amolou
numa pedra sem tirar os olhos do defunto. Agora o olhava com um misto de raiva
e compaixão. Sua respiração e o movimento do braço que amolava a faca iam
numa crescente, contrastando com a música de fundo suave. Contudo, chegou
ao ápice e parou num rompante bufando molhada de suor. Estabilizou a
respiração, concedeu ao cérebro permissão para identificar o cheiro de cravo que
tanto a agradava, sem demora andou em direção ao morto, com a faca em
punho. Passou a mão pelo corpo rechonchudo diante de si.
“No início, você não economizava elogios aos meus dotes culinários. Se
gabava de ter casado com uma mulher muito da prendada. Eu gostava. Merda foi
depois que descobriu que eu não podia emprenhar. Passou a bradar que estava
engordando por culpa minha, mas a boca não fechava. Comia feito um porco. É
isso mesmo que você ouviu! Um porco. Alias, não ouviu, não é?! Eu feito uma
besta, tentando fazer de tudo pra encontrar uma maneira de preencher minha
falha, mas nada era do agrado do senhor. Espera aí. Falha minha?! Que culpa eu
posso carregar de ter nascido assim? Me diga. Não pode, não é?! Você mudou da
água pro vinho, Cipriano. As águas-de-colônia, que me agradava, nem pra ver
mais. Não fazia mais questão que eu me embelezasse. Não teve a decência de
esconder que andava frequentando puteiros pra se deitar com quengas. Eu saio
nas ruas e as pessoas não me olham como pessoa, mas como uma coisa
qualquer que sustenta um par de chifres na cabeça. Quanta humilhação! Dói”.
Passou a mão na roxidão em volta do seu olho esquerdo. “Desgraçado!”.
Largou a faca e avançou com as mãos apertando o pescoço do morto, como
quem matava sua própria vontade. Não conseguindo fechar as mãos em torno do
pescoço corpulento, a mulher manejou a faca de forma impetuosa e cortou os
membros superiores do defunto. Ofegante, arregalou os olhos, abriu as mãos e
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