Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 70

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 consegui emprego n’outro canto. Interior distante.’ Senti meu coração gelar, pois entendia o que aquilo queria dizer. Justo quando painho tinha aceitado nosso namoro! ‘Vou com tu!’. Sabia também as consequências do que eu tinha dito. Pensando bem, sabia não.” Isabel fechou os olhos um instante. Ouviu ruídos vindos do quintal invadir a melodia da música. Dirigiu-se até lá e viu o bebedouro ressequido, iludindo os beija-flores que reclamavam com os bicos estéreis à seu redor. Sentiu culpa. Apressou-se em misturar açúcar na água que enxeria o bebedouro. Feito, observou durante alguns minutos o festejo dos beija-flores em torno do recipiente. Cantavam e bailavam. Bebiam água e se perdiam de vista nos ares. Com um impulso, deu dois passos à frente. Parou. Invejou a liberdade. Quis ser um beija-flor. De volta à cozinha, retornou às fotografias. “Hoje não tenho muita lembrança do dia do nosso casamento. Me arrependo de ter largado os estudos. Eu sei! Nunca te disse. Engraçado, agora que não tem mais jeito estou aqui confessando isso. Ainda bem que larguei depois de já saber ler. Não fosse os romances que Maria Aparecida trazia aos montes para mim, o toca-fitas e nosso pedacinho de terra, só me restaria a solidão enquanto você trabalhava”. Televisão em casa, era um sonho guardado no coração de Isabel. Quando sozinha, resmungava, culpando o pai de ter doutrinado o marido com suas ideias a respeito do aparelho. Logo depois, questionava a si mesma, se aquelas, não seriam ideias convencionadas por todos os homens. Então, estagnava na dúvida, reconhecendo que poucos foram os homens a cruzarem o seu caminho. “Eu me esforço, mas não me lembro do dia do nosso casamento. Se não fosse essas fotos, creio que as memórias estariam perdidas no tempo. É, eu não me esforço tanto assim, eu sei”. Desde o momento em que as lembranças saíram e não encontraram o caminho de volta, a mulher, às vezes se insinuava a procurá-las. Copiosa, logo desistia. “Tanto corre-corre… Nos mudamos às pressas, depois do casório. Logo você começou a trabalhar. Será que as outras moças também decidiram largar os estudos e se dedicarem exclusivamente à vida de casada? Gostaria de saber como elas estariam. Cozinhar, lavar, passar, agradar o marido. Não me incomodava antes. Talvez não me incomodasse até hoje, se as coisas não fossem como foi. Eu gostava de cuidar de você. Lavar e engomar sua farda de trabalho”. Por vezes, ela segredava aos quatro cantos da casa o desejo que sentissem inveja de como seu marido era bem cuidado. Encontrava amparo na intuitiva certeza de que nenhum outro segurança fosse mais bem trajado do que Cipriano. E que os outros o admiravam, ávidos para que as respectivas companheiras fossem como ela. [67]