LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
Diego da Silva Teles dos Santos
Ilhéus/BA
Toca-ftas
O sol escaldante do sertão nordestino invadia a janela da cozinha simplória
onde, em cima da mesa, jazia o corpo estirado. À sua frente, ajoelhada,
incrédula, figurava Isabel, balbuciando algumas palavras. Rezava ou conversava
com o defunto, não se sabe ao certo. Passou um bom tempo assim. Os olhos
semivivos analisavam cada parte do corpo diante de si. Os olhos do morto
aparentavam vagos, um focava o canto da cozinha ao seu alcance e o outro
parecia padecer para lá dos viventes.
Isabel lembrou-se do rádio toca-fitas. Levantou-se vagarosamente, fitando o
corpo sobre a mesa. Foi até o quarto, a passos de quem segue uma procissão, e
se apossou do velho toca-fitas embaciado por uma espessa camada de poeira, há
anos esquecido em cima do guarda-roupa. A fita permanecia lá. A fita com uma
única música gravada duas vezes que a prima trouxera de presente quando
visitou o Rio de Janeiro, trinta anos passados, pouco antes do seu casamento. De
volta à cozinha, ligou o rádio. A música foi ressoando, ainda que ruidosa,
quebrando o silêncio fúnebre do recinto. Isabel cerrou os punhos e os apertou
entre os seios. Inevitavelmente foi surpreendida por lapsos de recordações que
fora obrigada a esquecer, assim como aquele toca-fitas em cima do guarda-
roupa.
Foi até um estreito corredor que ligava a cozinha à sala e se olhou no
pequeno espelho, maculado com o tempo de uso, pendurado na parede.
Assustou-se. Viu um rosto mareado, uma pele enrugada, envelhecida
excessivamente, talvez devido à grande exposição ao sol. O mel outrora presente
no olhar, sumira-lhe ao fel das olheiras. Cabelos acinzentados. Inspirou,
custodiando todo oxigênio do ambiente, não por muito tempo, farta, expirou
bruscamente deixando o peso do corpo sobre a responsabilidade dos ombros,
sustentando-se com os dois braços em uma cômoda de madeira. “Ninguém deve
acreditar quando digo ter quarenta e sete anos.” Quando a música começou a
tocar pela segunda vez, adiantou-se até o quarto novamente e abriu as portas do
guarda-roupa. Tossiu quando o olor da naftalina desbravou suas narinas, em
seguida apoderou-se de um álbum de fotografias. Voltou à cozinha e se abancou
ao lado do morto.
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