Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 46

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Canova Carapicuíba/SP Piolhos Eita apelido que Adriano aprecia em si mesmo: Fera. Hoje está atrasado pra receber seu prêmio. E que conquista. Fera batalhou muito a vida inteira pra isso. Finalmente terá a oportunidade de fazer uma coisa nobre tão desejada por ele: Esfregar o troféu na cara de seu pai. E sempre tem um pai não é mesmo? Ou uma mãe. Mas, na maioria das vezes, lá está o bendito progenitor com seu andar altivo, rompante assustador e tom autoritário. Mas nunca é apenas isso. Seu Zé deve ser o maior responsável por todos os desgostos de Adriano. O grosseirão bebe? Nem uma gota. Fuma? Passa longe. Trai sua esposa? Acho que não. Bom, com relação a isso, agora é que não se mete a besta em tais tipos de aventuras mesmo. Já chegamos lá. Ora. Então qual é o motivo de tanto ressentimento? A questão é que o disgrama batia, sem razão aparente, em Adriano, todos os dias, enquanto berrava com gozo na face: “Você não vai ser nada na vida seu lixo, Nunca!” Adriano chegou a pensar que talvez não fosse seu rebento legítimo. Mas logo se convenceu de que Zé simplesmente era ruim mesmo. Fera escolhe o melhor terno e coloca seus dois pares de sapatos no meio da sala. Após alguns minutos, opta pelo preto e descarta o marrom. Enquanto ajeita a gravata, se lembra que Zé já teve problemas com piolhos. “Ainda bem que não puxei o sangue de porco dele.” Adriano sorri ao se lembrar de Zé passando remédios na cabeça, bem como, ingerindo antídotos e, até mesmo, chás amargos receitados por umas velhas do bairro. Não houve jeito e seu pai raspou os cabelos. No entanto, os piolhos migraram para seu saco. Zé passou a coçar o bicão a todo momento. Sem perceber, já estava com a mão nas coisas em plena rua. — Liga não Donana. É piolho. — Disse Zilda numa ocasião em que estava andando com seu esposo e com Adriano pelas ruas da vila. — Cala a boca mulher. Quer piorar tudo? Teve que pelar o saco também ficando careca em cima e em baixo. Adriano se regozija ao lembrar disso. Penteia sua vasta cabeleira de mulato. Admira a própria beleza e sente que é um dia onde seu pai não deixaria de reconhecer que seu filho é um vencedor. Alguns anos depois de Zé ter tido problemas com piolhos, foi atropelado por um ônibus e ficou inválido. “Bem feito.” Pensa Adriano sempre que visualiza seu pai numa cadeira de rodas. Após o acidente, Zé foi se tornando um velho resmungão, rabugento, mas inofensivo. Aos quarenta, Fera receberia uma coroação digna de seu esforço e talento. E pra levar o pai ao local, Adriano havia ajeitado tudo com sua mãe. [43]