Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 182

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 transformando-o num inveterado alcoólatra, capaz de sozinho, consumir numa semana um barril de amontilado. -Mas o que poderia ser mais despojado da parte de um homem que doar todo o seu prêmio a instituições filantrópicas ? -Deixá-lo imediatamente como herança. Ao doador, não restaria nem mesmo desfrutar em vida do reconhecimento dos donatários. Anthony, um cristão convicto, ficou extremamente surpreso, chocado, quase rechaçando a insólita proposta. De repente viu seu sonho tornar-se um pesadelo. Contrafeito, teve que reconhecer o argumento como válido. Em vez de assistir a uma missa do galo, iria ouvir um réquiem para os mártires que seu jogo, numa fatalidade, havia criado. Ao público restou fitar longamente o proponente para certificar-se de sua sobriedade e lucidez. O empresário fez um gesto ao advogado que começou a providenciar um testamento, enquanto ele próprio assinava o cheque em nome de Allan, e que este endossou ao orfanato da cidade. Antes que os sinos da igreja mais próxima repicassem avisando que Jesus havia nascido novamente, meu pai voltou calmamente para casa, onde cumpriu sua parte no trato, fazendo jus ao prêmio. Como um corvo, vi-o adentrar sorrateiramente nosso humilde lar com sua capa preta, velha e surrada, abrir um armário da cozinha e pegar um objeto. Depois deitou-se pela última vez, tendo ao colo seu gato preto de estimação. Vivendo até a maioridade naquele orfanato, ouvi sempre menções ao seu gesto abnegado e à ousadia com que venceu os competidores naquela contenda tão singular. Mas tenho certeza de que ele queria apenas reabilitar seu nome e imagem perante a comunidade, desejo que vi expresso, no dia seguinte ao de sua morte, no manuscrito encontrado numa garrafa vazia de remédio. [179]