LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
língua, sem fazer cara feia ou sem querer repetir a dose. Se viesse outra dose
até ele beberia. Só porque a dose se apresentou diante dele e em porta aberta
não se finge que tudo esteja fechado.
Nica andava por necessidade imposta de andar. As crenças dele se resumiam
em andar. Eram os passos dele, não se importava com seu vizinho nem olhava
pros lados, era pra frente, sempre pra frente.
Andava sem virar a cara pra trás e não se importava com o que ocorria, o
que viria, com o que estava escondido naquele embrulho atrás daquela curva.
Não havia curvas. Era caminho reto.
Apesar das curvas e das voltas que a vida dá.
A roda gigante. Nica de mão dada com o grande amor da sua vida. Eurídice.
A mulher que não controlava as mãos do Nica e que escutava palavra por palavra
dita entre silêncio e solavancos da gagueira. O Nica não era gago, nunca fora, e a
cadeira de balanço agora balançava serenamente como se continuasse os passos
do Nica, preso numa cadeira de balanço com pessoas passando, crianças
crescendo, outras gentes partindo, e o grande amor da sua vida, Eurídice, lhe
fazendo dengo e companhia. Os passos sem sair da cadeira, sem sair da
varanda, sem precisar mudar de sapato e jamais querendo entender por que as
palavras fugiam dele no encontro com as mulheres e o corpo dele todo tremia
ainda quando olhava para Eurídice e os dois seguiam se olhando e pensando nos
passos que iam se dando por si sós.
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