Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 11

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Airton Baquit Fortaleza/CE Cárcere Tudo que consigo lembrar é de mamãe deitada no banheiro, com poças de sangue ao redor dos cabelos. O chuveiro ainda estava ligado. Água caindo por cima de suas pernas. Fiquei desesperado ao ver minha mãe esparramada naquele cimento batido, feito animal atingido por uma flecha. Ela tinha sido o alvo, e sentiu de perto a força da morte. Nenhum sinal de lucidez. Suas narinas jorravam um intenso líquido viscoso, a invadir cada parte daquele minúsculo banheiro. Meus gritos não despertaram nenhuma reação naquele corpo completamente nu, ensaboado, pálido. Levantei-a pelos cabelos, apoiei seu corpo sobre minhas costas, enrolei suas carnes com um cobertor de lã. Joguei minha mãe em cima da cama. Parti desesperadamente pelas ruas de nosso bairro. Meu peito gritava pedindo socorro. Mamãe estava morrendo dentro de seu próprio lar. Apenas um piscar de olhos. Foi tudo o que sobrou daquele instante sangrento. Os médicos fecharam o diagnóstico. Acidente Vascular Cerebral. Mamãe ficou com 80% do corpo comprometido. O movimento do olho direito foi sua única forma de estabelecer contato com o mundo. Imagino que aquele fechar-abrir de olho era uma forma de sentir minimamente a vitalidade, um sinal de que a prisão em seu próprio corpo ainda deixava entrar um ínfimo raio de sol, de esperança. Talvez essa piscadela tenha sido o motivo principal para que mamãe durasse mais de duas décadas, mesmo estando amarrada, presa e submissa à sua própria constituição física. A dor de minha mãe vinha da escuridão de sua existência. O peso das correntes carnais era cárcere sem nenhuma possibilidade de libertação, pois seu corpo estava fundido em amarras corpóreas originárias de seu hábitat. A vida emitia sinais através de um olho. E isso era tudo. Lembro-me de nossos primeiros contatos. Mamãe piscava o olho rapidamente. Fiz inúmeras perguntas. [8]