LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
— O GPS? É uma máquina, pai! Nem sequer está online. E há quanto tempo
não o atualizas? Queres que eu te ensine a tirar isso da net?
— Está atualizado — resmungou Abraão, desconfortável. — Tem-me dado
bons conselhos. Confio mais no Celestino, como lhe chamas, do que nos mapas.
— Ia-nos tramando de vez...
«Vire à esquerda e entre na ponte!» — continuava Celestino.
Ajustado o itinerário e ultrapassado o conflito motivado pelas condições
rodoviárias, pai e filho seguiram o seu destino, sob o conselho sábio de Celestino:
«O abate deve ser rápido e a sangria total, conforme o procedimento
ritual». Abraão atrapalhou-se, mas Isaac não pareceu aperceber-se. Ia entretido
com o seu próprio smartphone, mas atento a se o pai não se enganava no
caminho.
Em menos de meia hora, passaram o Guincho e chegaram à Peninha. O
tempo continuava encoberto, mas já se avistavam pedaços da costa e do Cabo
da Roca. Abraão pegou na mochila e na saca de lenha e chamou Isaac. Sobre
uma rocha que culminava um esporão do barrocal, e depois de uns gestos rituais
que aprendera, Abraão dispôs os cavacos sobre as acendalhas e começou a
acender o lume.
— Pai, o que estás a fazer? Uma fogueira aqui, sem a mãe, à hora do
pequeno almoço... E o entrecosto? O que se passa contigo? — disparou Isaac,
apreensivo.
— É um sacrifício, uma ordem do Senhor. Não posso desobedecer.
— Pai, foste outra vez aos saca-dízimos?
— Não, rapaz, foi o Senhor mesmo que me disse para te imolar — anunciou
Abraão em voz grave, enquanto tirava a faca da mochila.
Embora aterrorizado, Isaac acionou as três teclas de emergência-criança do
seu smartphone, que ele sabia que enviavam um pedido de socorro e as
coordenadas do aparelho.
— Vais-me matar? O teu filho? — choramingou.
— Tu não és meu filho. Basta olhar para essas melenas vermelhas!
Em estupefação, Isaac hesitava entre tentar fugir e argumentar. Nesse
momento, o seu telemóvel começou a vibrar. Abraão arrancou-lho das mãos e
atirou-o para a ribanceira de penedos.
Isaac nunca tinha visto o pai assim. Virou-se para fugir, mas a manápula
do pai agarrou-o.
— Larga-me, pai! Larga-me!
— Já disse que não sou teu pai. Tá quieto! Eu tenho de oferecer este
sacrifício ao Senhor, para que eu encontre graça diante d’Ele, me proteja e me
torne feliz.
[106]