Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 108

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 animosidade escondida para com Isaac. Mas não deixava de ser uma ordem. Mandava-o matar o filho, num ritual de adoração comandado pelo próprio Senhor e não iria contra ela. Nem contra essa, nem contra nenhuma outra. Dias depois, muito cedo, Abraão obrigou o filho a sair da cama e a acompanhá-lo. Numa mochila, meteu uma faca de cozinha, um isqueiro piezoelétrico e uma caixa de acendalhas ecológicas. Na bagageira do Jeep, já tinha um saca de lenha do Aki. Meio ensonado, Isaac demorou a estranhar a excursão matinal, até porque o pai, não sendo madrugador, de vez em quando tinha assim repentes inesperados. «A 400 metros, entre na rotunda e saia na segunda saída» — dirigia Celestino, do telemóvel que Abraão fixara no interior do para-brisas. — Aonde vamos, pai? Abraão não respondeu. Não gostava de ter de se explicar. — Pai! — insistiu Isaac. — Tá calado! Vamos ver o teu avô ao lar da Azóia. Mas primeiro passamos na Peninha, para ver a vista. — A esta hora? Com este nevoeiro? Porque é que a mãe não veio? Seguiam então pela estrada secundária junto a Barcarena, quando Isaac deu um grito: — Cuidado! Pai! — O que foi? — assustou-se Abraão. — A ponte não está lá… Para, pai! «A 200 metros vire à esquerda e entre na ponte!» — comandava impávido Celestino. — Estás parvo? É do nevoeiro! Não ouviste o que o Senhor disse? — ralhou Abraão, abrandando. — E tu não viste as placas? Para! — Arre, que é chato! Queres saber mais do que o Senhor? — Para, já! — gritou o miúdo, muito mais alto do que alguma vez gritara com o pai. Abraão parou. Através da neblina matinal, nada de anormal parecia haver com a ponte. Saíram do carro e aproximaram-se do que devia ser a balaustrada. Afinal, era só um resto. Antes, uma grande placa horizontal derrubada por algum carro por sobre uns blocos de cimento esbranquiçado pela geada avisava: “Ponte destruída. Utilize a variante de Leceia”. Aproximaram-se mais. Lá em baixo a água rosnava irada e inquietante. — Tás a ver pai, eu não te disse? Havia placas de perigo desde lá atrás. — Mas o Senhor… [105]