LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
Joaquim Bispo
Odivelas, Portugal
Abraão e o GPS
Abraão nunca aceitara bem aquele filho nascido fora de tempo. Quando o
Senhor lhe anunciou que ia ser pai, Sara já tinha alguma idade. Como podia
ainda gerar descendência?
Sara tivera uma série de abortos espontâneos. O ambiente insalubre em
que toda a gente vivia no século XXI, não ajudava. A carne estava carregada de
hormonas, o peixe, de mercúrio e outros venenos, as verduras, de agrotóxicos e
chumbo dos fumos de escape. Aquela estada em terra estrangeira também fora
traumática. Fora vítima de violação e sabe-se lá se apanhara alguma doença.
Depois de todas as provações, e já sem esperanças, veio aquela voz pausada e
grave anunciar-lhe o que parecia impossível:
«Corta o teu prepúcio e daqui a um ano serás pai» — ordenara a voz do
Senhor, em tom assertivo, vinda do telemóvel desligado.
Abraão não percebeu porque é que o prepúcio vinha ao caso — embora
tivesse lido umas coisas sobre DST na Internet —, mas obedeceu e nasceu Isaac.
Inacreditável; o Senhor prometera e cumprira, não havia dúvidas. Quase tão
inacreditável foi a criança nascer com aqueles caracóis ruivos que não existiam
na família. Por isso, Abraão sempre olhou o filho de través. «Crê e viverás!» —
ameaçou Ele, certa vez, em voz austera vinda do robô de cozinha. Isso foi fácil.
Abraão tinha vontade de acreditar.
A psicologia já vai tentando explicar — sem grande aceitação —, como é
que o imaginado toma conta do racional e docilmente o conduz pelos meandros
de efabulações puramente mentais, como se fossem eventos acontecidos. O
pensamento desejoso, que entretanto foi dominando Abraão, teria talvez origem
na sua convicção de que Isaac não era seu filho, e aliciava-o com a possibilidade
de ele ser filho do Senhor. Mais valia que Isaac fosse filho de um ser
sobrenatural, do que de algum vizinho dissimulado. Ser trapaceado nesta matéria
por alguém próximo ou amigo de casa era intolerável.
Com o tempo, nem tal estratagema mental concedia ainda descanso. Já
andava Isaac pelos onze anos quando o Senhor, usando a voz modulada de
Celestino, na aplicação de GPS do telemóvel, comunicou a ordem fatídica:
«Vai à Peninha, constrói um altar sobre a Pedra da Visão e imola o teu filho
Isaac.»
Abraão não resistiu muito, nem perguntou por quê. Se era o Senhor que
mandava… Como sempre, a ordem não o constrangia e até vinha ao encontro de
um pensamento acarinhado, mas mantido íntimo, e explicável talvez por essa
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