Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 176

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 De início, tudo foi assustador. A falta da mãe, do quarto, da casa, das refeições alegres, das brincadeiras, das histórias contadas antes de dormir. Mudança difícil para ser assimilada assim, bruscamente. De repente, tudo passou a ter horário fixo, inflexível. Diferente da complacência da mãe. Não havia possibilidade de alterar nada, absolutamente nada, apenas seguir em frente. Adaptaram-se ao internato. O requinte do ensino era prioridade da instituição. Era oferecido, além do estudo acadêmico, um leque de atividades. Aprenderam: costura, bordado, pintura, culinária, boas maneiras. Inteiraram-se da literatura, eram leitoras vorazes. Dedicadas, interessadas, exemplares, não foi difícil conseguirem uma convivência amistosa. Aos domingos, quando não estava viajando, o pai sempre as visitava. Conversavam, ganhavam docinhos, balas. Alegria nas chegadas, tristeza nas partidas. E os anos se passavam. Para as meninas, o internato era de janeiro a janeiro. Não iam para casa nem mesmo nas festas de final de ano. Aliás, não havia casa. Com o tempo, o pai decidiu vender o imóvel. Morava em uma pensão. Além de menos oneroso, era muito menos solitário. A casa era povoada de recordações, ele não conseguia lidar e conviver apenas com lembranças. Queria a vida, lutaria até seus últimos dias pela educação das meninas. E lutou. Mas o velho coração, num ataque fulminante, interrompeu a batalha. As meninas ficaram chocadas quando um parente distante apareceu no internato. Sem meias palavras, a verdade foi contada. E a dor foi infinita. Choraram, silenciosamente. Angelita era a mais velha, mas ainda não era adulta. E assim, por determinação do tio, que mal conheciam, foram obrigadas a deixar o internato. Foram morar numa vila do interior. Distante, muito distante da Capital. Viajaram quase dois dias para chegar à nova morada. O tio era comerciante de calçados, casado com uma senhora muito refinada, prima de Santos Dumont. Não tinham filhos. A esposa, inconformada de morar naquele fim de mundo, vivia em constante litígio com o tio. Não demorou muito, a vontade da mulher venceu a demanda e se mudaram para Minas Gerais. Mas deixaram para trás as duas meninas. [173]