Revista LiteraLivre 18ª edição | Page 171

LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019 Rafael Otávio Modolo Bauru/SP A garota cabalística Rebeca sabia que havia algo mais naquela sala do que somente um mundaréu de livros, uma escrivaninha de mogno, garrafas de uísque, velhos cadernos e blocos de anotações. Não que fosse pouco, mas o escritório de seu pai, próspero judeu, já não tinha para ela o mesmo ar tedioso que captara na infância, quando brincava sob a mesa enquanto ele virava madrugadas lendo, escrevendo e bebericando Scotch. Para uma criança, era impossível crer que alguém pudesse trocar o sono por estudos, mas como seu pai, viúvo e sem outros filhos, era um homem muito ocupado, cada minuto de sua presença era maravilhoso, mesmo que fosse à penumbra do famigerado escritório. Contudo, agora adolescente, Rebeca já não ia mais ao escritório, talvez por não mais brincar como a criança que era, talvez pela rinite que lhe perseguia ou talvez porque aquele cômodo a fizera substituir a prazerosa sensação infantil por um medo irracional. Numa gélida noite de inverno, a jovem, enfim, deu ao medo razão. Sozinha em casa, ouviu o assobio do vento que irrompia no corredor principal da mansão e correu para fechar o escritório, cuja porta atacava os batentes a cada fria rajada. Vendo a janela escancarada, caminhou pelo obscuro cômodo e se deparou com um dos cadernos de seu pai, que estava aberto, com as páginas esvoaçando. Curiosa inata, Rebeca tomou o livrete entre as mãos e o leu: “É chegado o último ciclo lunar de minha amada criação; lá se vão quinze anos da coisa mais bela da face terra. É chocante que possa haver tanta beleza num ser que não é humano.” [168]