LiteraLivre Vl. 3 - nº 18 – Nov./Dez. de 2019
Márcio Adriano Moraes
Montes Claros/MG
Uma velhinha
Hoje, revi, depois de quinze anos, uma velhinha, que, há quinze anos, já era
velha. Naquele tempo, ela vendia panos de prato bordados nas ruas da cidade.
Eu a via em pontos de ônibus e ruas do centro. Mas também cheguei a vê-la em
ruas do meu bairro, uma caminhada de uns quarenta a cinquenta minutos até a
praça Dr. Carlos. Caminhada de passos largos. Imagino que ela caminhara por
outros mais longínquos bairros, quiçá visitara outras cidades. Ela não parecia ter
nenhuma condução própria. Seu transporte, sem dúvida, sempre fora os ônibus
coletivos. Eu a via oferecer às pessoas os seus panos de prato, cujos bordados,
com certeza, eram frutos de suas mãos. Não me recordo de ter visto alguém
comprá-los. E imagine, ela também os ofereceu a mim, que, como muitos,
ignorei a oferta. Hoje, porém, eu a revi.
Poderia hesitar, mas tenho certeza de minhas imagens fotográficas: essa
velhinha, eu nunca a vi acompanhada. Contudo, não digo que vivia só. Não tenho
essa onisciência. Sei, no entanto, que seus panos de prato bordados a sustentara
até este momento. Sustentara o seu corpo franzino e, por que não, sustentara
uma família inteira, oculta, mas família.
Depois de quinze anos, eu a revi. Não digo que ao longo desse período eu
não tenha voltado a vê-la. Por vezes, ela me aparecia no seu contínuo labor. Mas
nunca tinha fixado o meu olhar e coração em seu ser com tanta intensidade
como neste momento, em que vivo, e que me exige tal força. A sua fisionomia se
cravou em minha mente. Poderia dizer que ela lembrava minha avó paterna.
Verdade, pois, de fato, lembrava. Porém, acredito que não foi isso que ela me
deixou. Não. Não foi a recordação de um ente querido, uma mera semelhança
física. Essa senhora de cabelos brancos me legou algo mais. Algo que espero
compreender ao longo dessa escrita, em que a memoro.
Hoje, eu a revi, estava próxima à Praça de Esportes. Eu saía de uma loja de
informática, à procura de tecnologias, recurso indispensável para a vida
moderna. Então, ainda no estacionamento, eu a revi. Ela estava segurando em
um poste, desses de placas de trânsito. Não me atentei para a informação
contida na placa. Seria irônico, mas muito mesmo, se a placa fosse de “pare”. Ela
estava segurando, firme. Seus ombros curvados, numa postura tipicamente
anciã, corcunda, de peles altamente enrugadas. Eu a encarei. Ela levantou os
olhos e me olhou, como quem olha o nada, sem me fitar, sem dar por mim. Mas
eu me deixei penetrar pelo seu rápido olhar. Não pude deixar de perceber que um
de seus olhos estava baixo, pendente, sugerindo que fora vitimada por um “AVC”,
talvez. Passei por ela e continuei meu caminho, mas sem os passos que me
acompanhavam. Eu não poderia caminhar da mesma forma depois desse
encontro.
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