Revista LiteraLivre 16ª edição | Page 198

LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019 Prata da Casa Roman Lopes São Paulo/SP O fluxo do vermelho interrompido, transformando transeuntes incógnitos em espectadores possíveis… Nessa breve pausa em que o tempo parece dar um descanso aos viventes, aparece o bailarino de prata, que cresce até alturas inimagináveis, para que todas as pessoas que habitam as pequenas cápsulas de cortar espaços possam apreciar sua dança de fogo… Fogo e prata se misturam, em uma dança de archotes arriscados, que riscam o ar, soltando fumaça de prata e cheiro de enxofre… O bailarino, impassível, executa uma coreografia criada pela dor e pelo abandono… Coreografia social de uma escada inacessível, mas que continua sendo sonhada… Coreografia entremeada de olhares cabisbaixos e sorrisos altivos… Cessa a dança, o fogo se extingue… O bailarino de prata retorna de seu voo momentâneo para desfilar entre os estreitos corredores perigosos, sob o risco de duas rodas desatentas ou impacientes… Chapéu preto-prata nas mãos, ele caminha entre os ocupantes ocasionais daquele espaço e vê, como gotas de alívio, pingos monetários molharem a face externa de sua cabeça de prata… Algumas prateadas, como sua própria condição… Outras douradas, para lembrar- lhe que ainda existem conquistas maiores… Mas o desfile é efêmero… O fluxo é retomado, agora colorido pelo verde da esperança que se vai… Esperança de mais água, para minimamente aplacar a sede dos que dependem de sua dança… Como um exímio centroavante, ele dribla as rodas que começam a carimbar o asfalto, desprezando sua presença em nome do que é considerado mais importante… O pão de cada dia, a escola da família, o lazer necessário e merecido, a jornada patrimonial… Tudo de que precisa um cidadão respeitável… O bailarino de prata é um hiato de exceção aceitável, importante para que todos possam expiar suas culpas ególatras… Afinal, são apenas parcos segundos de coexistência forçada… A vida segue e os transeuntes abandonam a plateia… Um rápido intervalo para o bailarino reacender a chama e abrir novamente as asas de seu voo fugidio… A alternância das cores ilumina sua dança… Segundo ato, que reencena o primeiro… Os espectadores são os mesmos outros que o acaso colocou diante dele… Acaso talvez infeliz para ele e certamente infeliz para os espectadores, que quase não enxergam o gigante voador que dança 195