LiteraLivre Vl. 3 - nº 16 – Jul./Ago. de 2019
Aos olhos de seus familiares, Gregor Samsa havia regredido
irremediavelmente, como se abatido por um castigo, chegando a nem ser mais
considerado membro da família, como afirma textualmente sua irmã.
Mas a sua inusitada transformação (voluntária ou não) foi o móvel
suficiente e necessário para que todos os seus pudessem, de alguma forma,
superar-se.
Voltam a trabalhar, tentam se estabilizar como seres autônomos e
responsáveis por si mesmos. Tornam-se mais humanos. Sua nova forma e
postura obriga seus familiares a serem finalmente produtivos.
Gregor Samsa despojando-se de sua vaidade, orgulho e ambições, renuncia
a seu papel hegemônico deixando aos familiares a iniciativa de tomarem suas
próprias decisões. Como protagonista (o primeiro que agoniza), desencadeia uma
sucessão de mudanças irreversíveis e dramáticas, como o fato de, ao admitirem
inquilinos em sua casa, aqueles parecem enxergar-se nestes como estranhos
vivendo em seu próprio lar.
Qual teria sido sua intenção ? Haveria uma vontade superior agindo sobre
sua vida para transfigurar sua constelação familiar ? Estaria se concretizando o
destino do ser humano em tornar-se aquilo que se é (na individuação de que nos
fala Jung)? Mas de que maneira isso? Transformando-se num ser inferior ?
Aparentemente Franz Kafka reuniu nesta metamorfose os 3 aspectos
apontados acima (o castigo, a catarse, a transcendência) porque talvez quisesse
mostrar o que ele (autor) podia fazer com o que os outros haviam feito dele
numa época em que os preconceitos e segregações mostravam claramente que o
ser humano regredia em moral e compaixão enquanto avançava científica e
tecnologicamente. Castigando seu personagem com a nova forma, forçando-o a
enxergar sua desmedida (hybris), levou-o a purificar-se e consequentemente
estimular os seus a transformarem-se também.
Ou, por outro lado, decepcionado com as transformações promovidas pela
modernidade, onde já não encontrava mais certezas, decidiu retornar à condição
mais estável,conservadora e segura que é a da vida precisa, previsível e
instintiva do animal completamente irracional.
Contra todos os antagonismos, Kafka realizava a alquimia de modificar-se,
literalmente (e literariamente), num ser apto a digerir os restos do mundo em
decomposição ...
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