LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
anos de parceria e coleguismo. Ele estava lá ou não? Havia outros olhos, quem
sabe verdes, sondando sua beleza? Aquela passividade a que se via obrigada, a
incapacidade que a prendia cortava à golpes finos d e gilete, de dentro para fora.
O último cliente foi embora, a noite acabou, o restaurante fechou. Ele não
apareceu.
Isabel saltou do seu banquinho sobre os saltos altos, agarrou as coisas e saiu
pelo mesmo caminho que entrara. Caminhou pela rua, temerosa. Parou na ponta
da calçada. Aguçou os ouvidos para lhe sinalizar um veículo. Aflita com a hora e a
exposição de si mesma que havia perpetrado – sentia-se fantasiada para um
baile de carnaval que não acontecera. A caridade indesejada parecia se ressentir
dela, que ousara tanto naquela noite – ousara ser mulher inteira, ousara somar
beleza à feiura da sua deficiência. A ajuda dos olhos de outros a transpô-la os
poucos metros para a outra calçada não vinha e os minutos se esticavam. Queria
ir para casa, vestir-se da maneira como deveria, esquecer-se de tudo, aceitar seu
lugar.
Decidiu cruzar a rua de ouvido. Colocou o pé no asfalto, depois o outro. Esticou a
mão e se lançou no desconhecido.
www.gato-sorridente.blogspot.com
95