Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 97

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Talvez estivesse arrumada demais para ir simplesmente trabalhar, talvez chamasse mais a atenção que a sua música. Sentiu seu corpo, a cintura se afundava, marcada, o tecido liso quase parecia líquido ao toque. Teria que ser aquele. Nenhum outro dava certo, dizia a si mesma, querendo convencer-se. E sentia-se bela com ele. Sentou-se na cama, pintou os cílios com a precisão metódica que desenvolvera ao longo dos anos de ser vista e não ver. Uma camada para cobrir, uma para caprichar nas pontas e uma para alongar nos lados. Não ia a lugar algum sem aumentar os olhos com o rímel preto. Após limpar os borrões cuja existência era inescrutável, pintou os lábios com o terceiro batom da fila da frente da caixa de maquiagens, o cor-de-boca-um-pouco-mais-escuro-mat. Já tinha exagerado no vestido, era melhor contrabalançar. Escolheu os brincos de cristal que ganhara aos 15 anos. O humor permissivo a agarrara. Decidiu trocar a sacola de nylon pesada de todos os dias por uma de couro imitando crocodilo. Enfiou os sapatos e saiu para a rua. Guiada pela haste de metal branca, a sua estrela amarela de seis pontas, que chocalhava ao tatear o chão, andou até o metrô na esquina, passou o cartão, encostando o quadril coberto do tecido líquido na barra da catraca. Uma sensação diária tornada tão diferente pelo revestimento. Quer ajuda, moça? Não, obrigada. No corredor da baldeação, uma pessoa, uma mulher, cruzou caminho com ela. Onde você está indo, mocinha? Vou trocar de linha. Você é cega mesmo? Sim. Toma cuidado, hein?! Não vai tropeçar! Deus te abençoe! Isabel sorriu educada, um sorriso duro. O tom de quem repreende um velho senil que ameaça fugir do asilo doía. Mas podia guardar a dor no mesmo compartimento das outras, sobre as de ontem, abaixo das de amanhã. Chegou ao restaurante no horário, assumiu seu lugar no banco alto do lado do pianista, seu amigo de longa data que fez algumas graças sobre ela estar tão bem-vestida. As notas de Porter, Holiday e Piaf fluíram diferentes por ela. Todo o tempo, movia-se como se fosse ela um outro, como se fosse o olho constante que a perscrutava. Sabia que desafiava, balançava o pé ao ritmo da música, oscilava o corpo suavemente, a cintura se ondulando , o cabelo caindo pelas bochechas, o microfone trocado de mão com languidez. A noite se esticava e ele não vinha. Um nó começou a se apertar nela. Queria perguntar ao pianista se estava vendo o rapaz de olhos azuis, poderia até mostrar a foto que tinha no celular. Mas não se pintara poderosa, não queria mostrar que se amava? Nunca falara de interesses amorosos com ele, mesmo em 94