Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 96

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 de imaginar que o olfato dos outros, não tão aguçado quanto o seu, responderia em um nível subliminar ao odor agradável. Enrolada na toalha, voltou ao quarto. Ligou o ventilador, só perto dos pés para não estragar sua obra, e abriu o guarda-roupa. A metade direita com os tecidos pretos e a esquerda com os coloridos. Cabides enfileirados com os tecidos de cores frias perto da divisa com as pretas de todos os dias; à medida que se aproximavam da lateral direita, as cores iam esquentando, até o último vestido pendurado, o vermelho justo ainda com a etiqueta da loja que nunca tivera coragem de usar. A imagem relatada por alguém a havia impelido a comprá-lo: Michelle Pfeiffer sentada sobre o piano de cauda cantando com sua voz de sedução. Separou a saia lápis que mais gostava e a blusa esvoaçante e transparente sobre uma regata. Tudo era preto. A lingerie precisava ser discreta, que não fizesse marcas, mas estavam vetadas as calcinhas beges de malha confortável compradas em pacotinhos de 5. O preto não erra. Teria preferido usar o sutiã marfim rendado que custara uma fortuna, mas se suas camadas fossem descascadas até revelar seu sabugo cru, a última das peles não podia revelar a vulnerabilidade, o quase branco de virgem – virgem que não era. Na meia-calça escolheu a que tinha a risca na parte de trás, um resquício do sonho das costuras à mostra de tempos remotos. Da meia-calça ela gostava. Um detalhe em que ousava ousar. Escorregou a saia pelas coxas cobertas e acertou o cós no lugar. A circunferência não dava, o fecho não alcançava. Apertou mais a carne, começando a desesperar por dentro. Não tinha jeito, a saia não era mais capaz de englobá-la. O suor nas axilas ficou de repente pegajoso. Na lateral esquerda do armário nenhuma das saias combinava com a blusa e, das que combinavam, todas pareciam caretas demais. Se usasse uma clara, precisaria trocar a calcinha escura. Toda a construção de si que planejara com cuidado por dias caia por terra. Tirou a meia-calça e pôs outra mais grossa. Colocou um vestido cinza. O decote era mais fechado, dava calor. Não, cinza era triste, nem cá nem lá. Sua vida já era nem cá nem lá o suficiente. Descartou-o. Folheando as opções nos cabides, negando todas, chegou ao fim, ao vestido vermelho Michelle Pfeiffer. Ergueu os braços para soltar as alças finas do cabide que o mantinha preso. A meia-calça com a risca antiga fazia um conjunto coerente. Isabel entrou dentro dele feito uma cobra que retorna a uma pele antiga. E os seus sapatos favoritos também combinavam, deu-se conta. 93