Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 62

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Não vejo meus sobrinhos já há algum tempo. Quando batia saudades, eu pegava o telefone e os ouvia. E ria novamente. Eu era o tipo de tio bobo, que brincava, fazia graça, ria. O mais novo, de quatro anos, troca o “l” pelo “g”. Um dia ele me chamou e disse que queria brincar de cozinhar. Peguei o telefone, iniciei a gravação e começamos a preparar a comida imaginária. “Vai fazer o que de gostoso pra gente?”, perguntei. “Bogo de baga”, respondeu o pequeno. Eu conduzia a conversa de modo que ele dissesse várias vezes o “bogo de baga”. Era o áudio de que eu mais gostava. Os dois filhos do primeiro casamento do meu irmão se chamam Thiago, como o pai. Sim, ambos se chamam Thiago. A maior loucura do mundo. Nunca conheci ninguém que houvesse colocado o próprio nome em dois filhos. Enfim. Meu irmão se divorciou, se casou novamente. Quando a esposa engravidou, eles fizeram um acordo. Se o bebê fosse menino, ele escolheria o nome. Se fosse menina, a escolha caberia à mãe. Foi menino, e, sem nenhuma surpresa para ninguém, meu irmão anunciou o nome escolhido: Thiago. A esposa não gostou, sugeriu outro nome, meu irmão recusou. “Trato é trato”, ele disse. Ela pediu, implorou. Nada. Chorou, esperneou. Ele amoleceu: “Que tal Santiago?”. “Não!”, foi a resposta. Ela ameaçou, vociferou, ele finalmente cedeu. O garoto se chama Heytor ♥ . O mundo dá voltas. Meu irmão se separou da segunda esposa poucas semanas depois do nascimento do garoto. Costumo dizer zombeteiramente que o casamento deles ficou abalado por conta da querela em relação ao nome da criança. Ele reatou o relacionamento com a primeira esposa, aquela que permitiu que os dois filhos tivessem o mesmo nome. Não tenho contato com meu irmão há alguns meses, coisas de família. Mas fiquei sabendo que ele já providenciou outro filhote. Só espero que, se for menina, ele não resolva chamá-la de Thiaga. Passei o dia meio amuado. Provavelmente não ouvirei mais aqueles fragmentos de memória que eu guardava com tanto carinho. Acho que essa perda tão boba trouxe à tona toda a falta que venho sentindo dos garotos, toda a saudade dos abraços, das brincadeiras, das gargalhadas. Tenho sonhado repetidas vezes com eles, e nos sonhos eles estão sempre distantes, quietos, tímidos. Nada daquela algazarra de sempre. Como quando a criança é apresentada a um primo adulto distante, do qual nunca ouviu falar. Disseram-me que esses sonhos representam o medo que sinto de perder totalmente o contato com eles, a ponto de nos tornarmos estranhos. Bem óbvio. De qualquer modo, eles estão sempre muito próximos de mim nas minhas lembranças. Minha memória não é lá das melhores, isso não tem conserto. Só piora conforme os fios brancos se proliferam. Mas a recordação dos sorrisos, das primeiras palavras e dos primeiros passos não é algo que eu possa esquecer facilmente. Quanto ao cartão, resolvi levá-lo a um técnico de informática. As chances são pequenas, ele me disse. Mas quem sabe? 59