LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
Não vejo meus sobrinhos já há algum tempo. Quando batia saudades, eu
pegava o telefone e os ouvia. E ria novamente. Eu era o tipo de tio bobo, que
brincava, fazia graça, ria. O mais novo, de quatro anos, troca o “l” pelo “g”. Um
dia ele me chamou e disse que queria brincar de cozinhar. Peguei o telefone,
iniciei a gravação e começamos a preparar a comida imaginária. “Vai fazer o que
de gostoso pra gente?”, perguntei. “Bogo de baga”, respondeu o pequeno. Eu
conduzia a conversa de modo que ele dissesse várias vezes o “bogo de baga”. Era
o áudio de que eu mais gostava.
Os dois filhos do primeiro casamento do meu irmão se chamam Thiago,
como o pai. Sim, ambos se chamam Thiago. A maior loucura do mundo. Nunca
conheci ninguém que houvesse colocado o próprio nome em dois filhos. Enfim.
Meu irmão se divorciou, se casou novamente. Quando a esposa engravidou, eles
fizeram um acordo. Se o bebê fosse menino, ele escolheria o nome. Se fosse
menina, a escolha caberia à mãe. Foi menino, e, sem nenhuma surpresa para
ninguém, meu irmão anunciou o nome escolhido: Thiago. A esposa não gostou,
sugeriu outro nome, meu irmão recusou. “Trato é trato”, ele disse. Ela pediu,
implorou. Nada. Chorou, esperneou. Ele amoleceu: “Que tal Santiago?”. “Não!”,
foi a resposta. Ela ameaçou, vociferou, ele finalmente cedeu. O garoto se chama
Heytor ♥ .
O mundo dá voltas. Meu irmão se separou da segunda esposa poucas
semanas depois do nascimento do garoto. Costumo dizer zombeteiramente que o
casamento deles ficou abalado por conta da querela em relação ao nome da
criança. Ele reatou o relacionamento com a primeira esposa, aquela que permitiu
que os dois filhos tivessem o mesmo nome. Não tenho contato com meu irmão
há alguns meses, coisas de família. Mas fiquei sabendo que ele já providenciou
outro filhote. Só espero que, se for menina, ele não resolva chamá-la de Thiaga.
Passei o dia meio amuado. Provavelmente não ouvirei mais aqueles
fragmentos de memória que eu guardava com tanto carinho. Acho que essa
perda tão boba trouxe à tona toda a falta que venho sentindo dos garotos, toda a
saudade dos abraços, das brincadeiras, das gargalhadas. Tenho sonhado
repetidas vezes com eles, e nos sonhos eles estão sempre distantes, quietos,
tímidos. Nada daquela algazarra de sempre. Como quando a criança é
apresentada a um primo adulto distante, do qual nunca ouviu falar. Disseram-me
que esses sonhos representam o medo que sinto de perder totalmente o contato
com eles, a ponto de nos tornarmos estranhos. Bem óbvio. De qualquer modo,
eles estão sempre muito próximos de mim nas minhas lembranças.
Minha memória não é lá das melhores, isso não tem conserto. Só piora
conforme os fios brancos se proliferam. Mas a recordação dos sorrisos, das
primeiras palavras e dos primeiros passos não é algo que eu possa esquecer
facilmente. Quanto ao cartão, resolvi levá-lo a um técnico de informática. As
chances são pequenas, ele me disse. Mas quem sabe?
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