LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
– Eu não sou maluco! – exaltou-se Abraão – Fiz somente o que me
ordenou meu Senhor!
Era um caso perdido. Melhor chamar logo o repórter, que esse é um prato
cheio. O sacana iria ficar devendo uma à Pilatos. Podia ver a manchete: “Lunático
ouve vozes e tenta matar o próprio filho!” Primeira página, com certeza, ao lado
do novo reforço do Flamengo. Se imaginasse que sairia no jornal teria feito a
barba. Se bobear aparece até o repórter da TV por aqui.
Bom, não há muito o que ser feito. Melhor chamar logo o escrivão e
registrar a ocorrência. Em suma, foi relatado pelo sargento Longino, do 33°
Batalhão, que às 21 horas do dia corrente, no alto da comunidade Monte Moriá, o
indivíduo identificado como Abraão da Silva foi surpreendido em flagrante delito
tentando assassinar seu próprio filho, Isaque da Silva, com um cutelo (anexado
aos autos do processo). A vítima encontrava-se imobilizada por cordas. O
agressor foi rendido e preso pelos policiais enquanto a vítima era socorrida pelo
SAMU em estado de choque. Isso é o suficiente para descrever o cenário, depois
o escrivão enche de abobrinhas para dar uma engordada no texto.
Pilatos estava intrigado com a postura do acusado. O ancião parecia
convicto do que fez e nem um pouco arrependido. Uma curiosidade mórbida
acometia o delegado.
– E se o senhor recusasse? O que aconteceria?
Pela primeira vez Abraão pareceu confuso. Jamais havia lhe passado pela
cabeça descumprir uma ordem do seu mestre.
– Não sei… – balbuciou – acho que seria castigado...
– Castigado você será pela justiça dos homens! – Pilatos deu um soco na
mesa, perdendo a paciência – Levem esse demente daqui e só me chamem
quando chegar o repórter!
Sozinho na sala, recostou-se na cadeira e jogou os pés por cima da
escrivaninha. O plantão ainda estava na metade, tinha uma madrugada inteira
pela frente. Acendeu um cigarro, tragou a fumaça e fechou os olhos. Fizera o que
era possível para aliviar a barra do velhinho. Lavava suas mãos.
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