Revista LiteraLivre 15ª edição | 页面 34

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 – Eu não sou maluco! – exaltou-se Abraão – Fiz somente o que me ordenou meu Senhor! Era um caso perdido. Melhor chamar logo o repórter, que esse é um prato cheio. O sacana iria ficar devendo uma à Pilatos. Podia ver a manchete: “Lunático ouve vozes e tenta matar o próprio filho!” Primeira página, com certeza, ao lado do novo reforço do Flamengo. Se imaginasse que sairia no jornal teria feito a barba. Se bobear aparece até o repórter da TV por aqui. Bom, não há muito o que ser feito. Melhor chamar logo o escrivão e registrar a ocorrência. Em suma, foi relatado pelo sargento Longino, do 33° Batalhão, que às 21 horas do dia corrente, no alto da comunidade Monte Moriá, o indivíduo identificado como Abraão da Silva foi surpreendido em flagrante delito tentando assassinar seu próprio filho, Isaque da Silva, com um cutelo (anexado aos autos do processo). A vítima encontrava-se imobilizada por cordas. O agressor foi rendido e preso pelos policiais enquanto a vítima era socorrida pelo SAMU em estado de choque. Isso é o suficiente para descrever o cenário, depois o escrivão enche de abobrinhas para dar uma engordada no texto. Pilatos estava intrigado com a postura do acusado. O ancião parecia convicto do que fez e nem um pouco arrependido. Uma curiosidade mórbida acometia o delegado. – E se o senhor recusasse? O que aconteceria? Pela primeira vez Abraão pareceu confuso. Jamais havia lhe passado pela cabeça descumprir uma ordem do seu mestre. – Não sei… – balbuciou – acho que seria castigado... – Castigado você será pela justiça dos homens! – Pilatos deu um soco na mesa, perdendo a paciência – Levem esse demente daqui e só me chamem quando chegar o repórter! Sozinho na sala, recostou-se na cadeira e jogou os pés por cima da escrivaninha. O plantão ainda estava na metade, tinha uma madrugada inteira pela frente. Acendeu um cigarro, tragou a fumaça e fechou os olhos. Fizera o que era possível para aliviar a barra do velhinho. Lavava suas mãos. 31