Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 208

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 fosse possível alguém tê-las pintado com uma camada aguarela, o tom castanho dos troncos e galhos que auxiliavam os passeios dos insetos e pássaros, o tom das flores tudo sobrepunha-se ao neutro granito daquele espaço. Sempre se sentava no banquinho de pedra com o alto cavalete de cedro à sua frente. Este fora uma das relíquias que não conseguiu abandonar no seu país. Ainda sem qualquer tela, através da sua armação podia ouvir a voz do seu pai: - Kaori, pinta com toda a tua essência. Deixa que o corpo seja comandado como uma marioneta do destino. Nós, artistas, somos instrumentos de uma força mística e devemos sempre oferecer um pedaço da nossa alma em cada obra. Preservara as tintas dele, muitas delas feitas pelas suas mãos trémulas. Segurou a que menos usava, o azul ultramarino, aquele que mais lhe recordava a sua infância. Cheirou-o, as memórias calorosas obtidas por aquele odor eram a sua musa. Quando tinha sete anos, sua mãe Yumeko faleceu vítima de um derrame vascular cerebral. Despedira-se dela com um beijo antes de ir para a escola e nunca mais a viu. Durante meses chorou a saudade e adoeceu, um dia, sentada no chão da sala recuperava da febre e dos vómitos da noite anterior quando o pai chegara com uma caixa de bamboo na mão. Sentou-se à sua frente, procurava a atenção da pequena que era tudo o que lhe restava. Abriu a caixa revelando uma pedra preciosa com um tom azul que parecia saído de uma fábula de tão surreal e mágico que era: - Isto é Lápis-lazúli. – Sorria o pai – Uma pedra preciosa vinda do norte do Afeganistão, juntos vamos transformar esta preciosidade num pigmento para lá de belo. Foi a primeira vez que entrou na oficina do pai, o cheiro a óleo e diluentes ondulavam pelo ar, haviam telas por todo o lado, algumas terminadas outras com apenas pequenos traços de tinta que se formariam em algo concreto e brilhante. Do lado direito da oficina tinha algumas máquinas velhas e descoloridas. À frente da grande janela estava uma secretária, sobre ela vários pincéis gastos, garrafas de diluentes, aguarrás, óleos e tintas de várias modalidades e características. Sentia-se hesitante a entrar naquele mundo tão desconhecido para ela, mas ao 205