Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 179

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 chegava. Às vezes era arroz com ovo, arroz com banana, arroz apenas, feijão com farinha, mas comíamos todos os dias. O quase talvez tenha me traumatizado, e por isso eu tinha esse medo da fome. Cheguei em casa quase morta de carregar aquele peso. Podia ter pego um táxi, mas a economia que precisava fazer daquele momento em diante havia me invadido e por isso fui a pé, me autoflagelando com a caminhada carregando um fardo maior do que eu podia carregar. Naquela noite não dormi nada, claro. Se não dormia direito nem quando tudo estava dentro da normalidade, imagine quando algo saiu do eixo. Não era mais para ir trabalhar, fui dispensada do aviso-prévio. Eu tinha de esperar que me ligassem para a homologação e exame médico. Passei o dia de camisola e limpando a casa. Limpei cantos que nem sabia da existência, cada milímetro foi esfregado com força, mesmo com o braço doendo da dor de sempre e do acréscimo de dor pelas sacolas pesadas. Limpei dentro de armários, tirei roupas que não usava mais, sapatos, bolsas, fiz umas dez sacolas para doação. Ou seria melhor vender? Como tudo aquilo cabia naquele lugar minúsculo onde eu morava? Na hora de fazer comida, fiz só um pingo. Era a economia de novo. Nunca fui de desperdício e jamais jogava comida fora, mas agora precisava fazer menos ainda. Ia aprender a comer menos. O pior é que sempre fui de ter fome o tempo todo, além da ansiedade que me fazia comer mais. O medo da fome ia fazer eu não ter tanta fome. Depois de um dia de faxina exaustiva, deitei e fiquei olhando para o teto. Enxerguei umas manchas escuras de bolor e lá fui eu pegar a escada e, vencendo o cansaço, esfreguei e tirei todas as manchas que encontrei pelo caminho. Por fim, tomei banho e desmaiei. O Zeus em cima de mim me acordando e o despertador tocando me fizeram abrir os olhos e, lembrando-me da realidade em que me encontrava, senti um aperto no peito como se fosse morrer. Não tinha para onde ir, quero dizer, não tinha o trabalho para ir. O que eu ia fazer? E como ia ganhar dinheiro? 176