Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 178

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Eu tinha 44 anos, dependia daquele salário para tudo: o aluguel do apartamento mínimo no centro da cidade, minha alimentação e do meu gato, contas de água, luz, gás, telefone, Netflix, etc. A família havia se diluído no caminho. Uns mortos, outros eu não via fazia décadas, e eu havia sobrado e ainda estava por aqui. Dez horas. Subi. De escada, para a cada degrau subido eu poder pensar sobre mais situações avassaladoras e terríveis. Entrei na sala branca e gelada e sentei na cadeira cinza de metal frio. Comecei a chacoalhar uma das pernas, com a ansiedade concentrada nelas. Fiquei uns dez minutos esperando até que chegou a moça do RH, baixinha, com um salto enorme, roupa parecendo que foi passada no corpo e cabelos lisíssimos e brilhantes. Disse-me um bom-dia com um sorriso amarelo, ainda que os dentes dela reluzissem de tão brancos, e sentou do outro lado da mesa, colocando uma pasta em cima. Toda a introdução, as justificativas, os esclarecimentos sobre os problemas pelos quais a empresa estava passando, todo o blá-blá se resumiu em uma frase curta e devastadora: “Você está despedida!”. Juro que me deu vontade de pedir “PeloamordeDeus” que não me despedissem, pois onde eu ia encontrar trabalho com dezenas de milhões de desempregados e tal? Que bom que um orgulho que sempre temos me impediu de fazer isso e também me impediu de chorar ali, na frente da moça. Desci as escadas, peguei minha bolsa e saí, sem olhar para ninguém, sem dizer nada. Alguém me chamou mas a rapidez com que saí não deixou a pessoa me alcançar. Lá fora chorei. Fui chorando no ônibus, no metrô e desci uns 3 km longe de casa para poder passar no mercado. Não chorava mais. Comprei comida para mim e para Zeus e produtos de limpeza em excesso. As sacolas ficaram absurdamente pesadas. Dividi entre os dois braços e me arrependi de ter comprado tanto. Sempre tive muito medo de passar fome, e essa é a justificativa para a compra enorme de comida. Ainda tinha dinheiro e ia receber o valor da rescisão, por isso acho que quis fazer estoque. Nunca passei fome na vida, mas quase. Éramos bem pobres e vivíamos com grande dificuldade, mas nunca faltou comida. Ela chegava com muito sacrifício, mas 175