Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 149

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Mas no momento, o que irritava mesmo era aquela posição incômoda de paralisia. Sentia a bunda achatada, dormente, os dedos duros e frios como os de estátuas de cemitério. — perdão pela redundante gracinha — E aquela mosca cada vez mais azucrinando, pois descobriu que não despertava reação em mim, então usou e abusou de seus voos e zumbidos, ziguezagueando dos olhos para o nariz, do nariz para as orelhas. Ameaçou olhar até dentro do ouvido, e circundou com aquele som horroroso zuim, zuim... Filha de uma... Quando comecei achar meio estranho: onde estavam as pessoas? Já havia acabado o velório? Há quanto tempo eu estava morto? A que horas iria ser o enterro? E se eu começasse a feder a ponto de eu mesmo não me aguentar?, não suportar o odor da minha própria podridão? Não, não pode ser, esse tipo de controle sobre a vida de ontem e a morte de hoje... Como escritor, sim, poderia manipular a personagem. Porém, tratava-se de minha própria vida, ou como queiram, de minha morte. — já dizia Heráclito de Éfeso, há quinhentos anos antes de Cristo. — “A verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se”, quem sou eu então para duvidar da experiência de morto/vivo que experimentava naquela oportunidade que a existência me proporcionava! Mamãe disse certa vez quando pilava café: “Bom dia pilão!” e o pilão respondeu: “Bom dia dona Maria!” A partir daí, claro, eu acredito em tudo. Dei mais uma espiada com a frincha dos olhos, a coisa já não estava mais me espreitando. Então sem delonga, sem mais especulações sobre as circunstâncias, e com o espírito leve, quase flutuando, saí do ataúde e caminhei claudicante, escorando-me pelos móveis, assustado e curioso. Quando ouvi um sonoro: “Aonde vais tu oh garboso infante?” Era a cretina dona morte com seu sorrisinho cínico. E num estardalhaço de rá, rá, rá, sumiu num tufo de fumaça. Ah, ah, ah, digo eu sua idiota! — disse eu sem nem um tico de medo. — E não lhe dei mais trela. Então resolvi tirar uma com a cara dela, brincando de fantasminha. Atravessei a parede do quarto; subi para o teto do corredor e andei de ponta cabeça até chegar à sala. Quando meu olfato foi aguçado. Era o aroma inebriante do charuto de papai. Era mais que reconhecível aquele cheiro/sabor de Havana. Papai datilografava em sua velha Remington. Num ímpeto de emocionante alegria eu gritei: “Pai!... Papai!” O vulto não respondeu. Aproximei-me e vejo que escreve alguma coisa. Pois como eu, papai também fora escritor. Melhor dizendo, como papai, eu também sou escritor. Com a diferença que papai era cronista dos bons. Não eu, um reles narrador de historietas inverossímeis. Um beletrista escrevinhador. Adiantei-me um pouco e li no alto da página o título da crônica que escrevia: “O DIA EM QUE MEU FILHO ACORDOU MORTO”. Tentei apoiar minha mão em seu ombro para indagar o que se sucedia; debalde. Só encontrei o vazio da incorpórea matéria. Era apenas um espectro no espaço vazio. 146