Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 148

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 papel suas memórias. Entretanto, como ele, também me recuso a dar maiores esclarecimentos. Quem quiser saber minudências a respeito de tão refinada técnica: escrever após a morte, que o faça como fiz eu e o Assis. Morra e decifre o enigma. Mas isso fica por conta de vocês. Não serei eu a dar luz a tão primoroso e excepcional recurso. Mas, enfim, como diz o dito: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe”, agora o que importa mesmo é que eu não tenho mais credores. Que maravilha! Que beleza!... Não devo mais pensão alimentícia... E o melhor: adeus dívidas com cartão de créditos! Tchau amantes exploradoras dos bens alheios! Pois, como bem diz aquela velha piada: “Mulher é como furacão: quando chega é molhada, selvagem e devastadora. E quando se vão levam tudo o que é seu: casa, carro, livros, discos, cuecas!” Mas agora, de corpo novo, espírito leve, sem o cansaço das homéricas ressacas, poderia começar tudo de novo. Finalmente, zerado! — comemorava eu. Entretanto uma coisa ainda me incomodava. Eram os resquícios do velório. O forte cheiro de flores e cravos murchos, restos de incenso queimado, tocos de velas nos castiçais ainda acesos. O ataúde apertado me estorvava o corpo. Estaria eu inchado? Resolvi me levantar, sair do ataúde. Antes, porém, alarguei um pouco mais a fresta das pálpebras e olhei dissimuladamente em volta, e o sobressalto: dei com a fatídica figura da morte e sua afiada foice, aos meus pés, na ponta do caixão com um sorrisinho safado. Não tive a divina coragem de me mexer, muito menos de me levantar. Procurei me tranquilizar. De repente um tremorzinho: O véu que cobria o meu rosto fazia uma cócega irritante nas ventas. Arrisquei fazer um biquinho, forçando um soprinho para afastar uma mosca que acabara de pousar em cima do lábio superior. A sensação de inércia no corpo era assustadora. Muito embora eu não estivesse com medo! Pois, como diz o provérbio: “Quem não morre não vê Deus!” Logo eu que enfrentei a ditadura nos anos de chumbo de poesia na cabeça e papeiro na mão, não seria uma desconfiançazinha de que estava morto que iria me borrar as calças. Até já imaginava o epitáfio na lápide do meu túmulo: “Minha vida não passou de um reles plágio de outras tantas e iguais vidas anódinas que pululam esse mar de mediocridades chamado de humanos”. Naquele instante o que me contentava era a perspectiva de uma vida nova que despontava. Mas também me apavorava a ideia de ter morrido realmente. Logo agora que as coisas estavam dando certo pra mim. Depois de três anos, acabara de escrever meu novo livro de contos. Finalmente foi publicado. Deleitava-me com minha namorada nova. Havia aprendido a beber cerveja, pois a ressaca era menor que a do velho whisky e da vodka de segunda categoria, as coisas iam de vento em popa, tudo caminhando bem, supimpa! 145