Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 171

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 A inquietação aflorou o velho hábito de bater os dedos de forma compassada quando algo a angustiava, e teve a certeza que a impaciência seria sua companheira pelo longo período em que se obrigaria a aguardar até que a chuva cessasse. O isolamento forçado direcionou sua atenção para o zumbido forte do vento que chacoalhava as vidraças e o barulho das pedras de granizo que impactavam nos vidros e telhados. Fixou seu olhar para as ruas e calçadas que eram lavadas pelas corredeiras da borrasca e para os pedestres que produziam movimentos rítmicos engraçados, correndo e sacudindo as vestes molhadas quando encontravam abrigo. Lembrou-se dos filmes de terror antigos, com o céu escuro transformado em um palco de luzes, tantos eram os raios que singravam o firmamento, e a bateria insaciável de trovões com seus estrondos ensurdecedores e repetidos como ecos. Para completar o enredo tenebroso faltava apenas o ranger de uma porta se abrindo e a aparição de um homem com faca na mão querendo matá-la. Gisele riu por lembrar-se da cena ridícula, mas voltou a se concentrar no mundo ensopado dos vivos que transitavam na rua. Seus dedos continuavam no ritmo compassado, mas agora na cadência das imagens e sons que prospectava naquela balbúrdia. Sua verve artística a tudo captava. Sua ânsia criativa buscou novos detalhes, nada mais escapava da sua percepção. E ela os granjeou no piscar das luzes das vitrines e semáforos, no balé multicolorido das sombrinhas e dos guarda-chuvas, nos toldos das lojas com água escorrendo e fazendo parecer uma série de cachoeiras alinhadas, e também, nas revoadas de pássaros que cruzavam o ar em voos rasantes e acrobáticos na busca de proteção sob os telhados. Tudo se encaixava de forma sublime e proporcionava um bailado perfeito. Movimentos e sons se completavam mesmo quando abafados pelo barulho da carga d’água, e eram apresados pelos olhos vívidos e pelos ouvidos sensíveis de Gisele. A angústia da artista chegava ao fim. Era o que buscara por dias e horas intermináveis, imagens e sons casados em um bailado com perfeita sincronia de 168