LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019
do pai, do outro, o imenso lago da avó. A grossa camada de pó que cobria todo o trajeto
denunciava os perigos que a menina tanto temia, os terríveis rastros deixados pelas cobras.
Alguns eram estreitos e compridos, atravessando quase em linha reta a estradinha de pouco
mais de um metro de largura. Outros eram fininhos, indicando filhotes, que ziguezagueavam
sobre o pó até desaparecerem na outra margem. E havia também os grossos rastros de
serpentes adultas, que faziam voltas sobre o pó da estrada.
A menina, parada em frente à estradinha como quem está em transe, recordava-se dos
inúmeros pesadelos que tivera com as feras rastejantes. Imaginava-se atravessando
rapidamente o caminho quando uma serpente saltasse da gramínea lateral, bloqueando sua
passagem. Tentaria recuar, mas outra já estaria esperando atrás dela. Cercada ali, no meio
do pó, encontrariam mais tarde os rastros de sua derrota.
Pensava nessas coisas quando ouviu a mãe gritar “vai logo, se tu não busca a água, tu vai
apanhar”. Sabia que a promessa era séria, precisava continuar. Lembrou-se que a avó
estava em casa. A velha senhora era muito compreensiva e certamente a acompanharia
quando retornasse, de forma que não precisaria atravessar sozinha aquele trajeto outra vez.
Esse pensamento trouxe consolo ao seu coração. Bastava então que atravessasse o
caminho dessa vez.
Sendo assim, começou os preparativos. Guardou a chave da casa no bolso de sua
bermudinha surrada. Observou mais uma vez o caminho repleto de sinais ameaçadores.
Perscrutou a gramínea das beiradas para ver se não havia sinal de alguma serpente a
espreita. Tudo parecia limpo. Deu um passo para trás, preparando-se para disparar, quando
percebeu algo se movendo no outro lado. O que quer que fosse fazia a gramínea tremelicar.
O medo já começava a tomar conta da menina quando a criatura se revelou, atravessando
rapidamente a estradinha. Era um preá, completamente inofensivo.
Para recuperar-se do susto respirou fundo algumas vezes. Já fazia algum tempo que estava
ali, se não atravessasse logo o trajeto, receberia a prometida surra. Deu mais alguns passos
para trás, fez uma prece pedindo que não se deparasse com nenhuma serpente durante a
travessia e então, com os olhos semicerrados, disparou a correr.
Segundos mais tarde estava parada do outro lado. Seu coração batia tão forte que parecia
querer arrebentar o peito. Tinha conseguido. Era certo que batera algum recorde de corrida
vigente na época. Verificou rapidamente se alguma serpente a tinha seguido. Nada. Aos tão
temidos rastros na poeira da estrada acrescentavam-se apenas as suas compridas e
desesperadas passadas.
Sentia agora o alívio dos que suportam grande provação, o refrigério dos que sobrevivem a
perigos de morte. Tinha atravessado o caminho. Estava a salvo. Já ia virar-se para continuar
quando percebeu algo reluzindo no pó, no início do trajeto, exatamente de onde disparara.
Colocou a mão no bolso. Um mal estar começou a tomar conta de seu corpo. Sentiu um
amargor na boca. O bolso da bermuda estava furado e o que reluzia no pó da estrada era a
chave da casa.
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