Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 115

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 Homem do Rio Íris Cavalcante Fortaleza/CE Seguia ribeira abaixo desde a nascente até vislumbrá-lo em toda a extensão, por onde transcorria o leito das águas. O sol erguia-se refletindo a incandescência sobre o espelho d’água, quase a cegá-lo. Manhã que vinha. A água corria ligeira e salpicava as folhas das árvores numa mistura com a poeira do vento leste, que o inebriava do cheiro lavado do rio. Em alguns trechos, o homem deparava-se com biomas que iam da caatinga a uma densa vegetação ribeirinha e pedras que pareciam ovos pré-históricos quase tão translúcidas como as águas sob os rebrilhos do sol. Os espíritos do rio o observavam do nascente ao poente e tinham aparências as mais variadas: indígenas, camponeses com a pele rugosa e maltratada pelo sol, crianças subtraídas do direito de crescerem e que seriam eternamente meninos e meninas de pouco mais de um metro, olhos infantis e sorriso trocista. Não se sentia só, porque não há quem esteja só num rio. É de espíritos que falamos. No percurso pela margem, ele dialogava através do olhar com esses personagens que tinham expressão, cor e movimento, exceto o velho pescador que navegava à frente e de quem não se via sequer o rosto, coberto pelas abas de um chapéu de palha. Seguia inerte na sua canoa a despeito de todo o resto. O homem do rio ergueu a mão ao velho num aceno, que não manifestou nenhuma reação, não se sabe se por desdém ou porque já fora tragado pela eternidade da solidão. Num ímpeto, o homem apanhou o espectro de uma canoa abandonada à margem numa restinga de areia, entrecoberta de musgos ao longo dos anos, mas ainda em estado navegável. Empurrou-a e foi-se ajeitando ao espaço, limpando o que fosse possível e adaptando-se ao manejo do único remo. Ia à direita e à esquerda, numa contínua troca de mãos que fazia diligentemente, 112