Revista LiteraLivre 15ª edição | Page 101

LiteraLivre Vl. 3 - nº 15 – Mai./Jun. de 2019 compras que se espatifaram sobre várias plantas. Das flores, pingavam claras e gemas. Edneia havia entendido que o local resgatava a memória da falecida esposa para manter seu espírito perene, como o bonsai. Certamente as cinzas da cremação alimentavam as seivas daquela árvore há mais de 40 anos. E a razão do vaso muito grande para o bonsai, devia ser para depositar também as cinzas de Virgílio depois que ele morresse. Virgílio deixou rolar uma lágrima. Em seguida, começou a comer com furor a terra do bonsai, só parando quando se deu conta que poderia desfalecer. Regurgitou. Respirou fundo. Sentiu uma náusea insuportável. Não satisfeito, arrancou todas as folhas da pequena árvore e igualmente as comeu com veemência. Em seguida, fez o mesmo com os galhos, o tronco e a raiz: os devorou, após décadas de extrema dedicação àquela planta. Horas depois, quando retornou com curativos na cabeça, Edneia encontrou a porta da estufa ainda aberta e a terra toda espalhada enquanto tocava a sétima sinfonia de Beethoven. Percebeu a ausência do bonsai. Seguiu as pegadas da terra úmida que se dirigiam ao interior da casa, passavam pelas escadas e terminavam no quarto de Virgílio. Abriu devagar a porta, que voltou a fazer seu costumeiro rangido. E sobre a cama havia grandes galhos com folhas outonais avermelhadas em forma de braços e pernas, todos ligados a um tronco similar ao do ser humano. A árvore parecia morta. Edneia gritou aterrorizada. Duas bolitas imóveis, azuis, com olhares de águia, em posição perscrutadora, saltavam de órbitas presas ao tronco, sobre o travesseiro. 98