Revista LiteraLivre 12ª edição | Page 97

LiteraLivre Vl. 2 - nº 12 – Nov./Dez. de 2018 Le Cirque De Chuchu: Le Noire Danseur DAVID LEITE Jandira/SP A caravana escapava de dentro da escura tempestade. Nem ventos, nem ondas, nada poderia definir a espessa matéria que os engolia junto a luz em sua volta. Apenas que era violenta como o mar ou como um furacão. O barulho dos madeiros dos comboios se quebrando ao serem lançados de um lado a outro, os gritos dos membros fugitivos, o breu... A mão do homem, então, se solta do caibro da carroça coberta depois de tanto lutar para se manter. O homem vai ao solo e, pelo instinto, se manteve ali, agachado, deixando tudo continuar rugindo palmos sobre sua cabeça. O tumultuoso comboio se afasta no meio da densa penumbra, e em pouco tempo nada mais se ouvia dele. O estalar intenso da tempestade também começa a se amainar. Um pouco se ilumina, então. Algo no meio do negrume começa a emanar um fio de luz. Como o pior parecia ter passado, o homem se encoraja a levantar a cabeça. Enfeitada de algum tipo de luz, uma mulher se aproxima em passos suaves, enquanto a escuridão começa a suavizar ao seu redor. A mulher, de bela e firme fisionomia, longos e brilhantes cabelos negros, vinha descalça em passos suaves de dançarina, como suas vestes negras admitiam ser. O homem, com a passada incerta, levanta-se e se sustém miseravelmente diante dela. A luz se expande, revelando apenas os destroços ao redor da parte da caravana fustigada pela força sombria de antes. O homem se apavora com a cena, mas retorna a contemplar a outra presença ali. - Você... Você está bem? – Questiona, embora ela parecesse distante do castigo em que ele estava e sua expressão, quase um sorriso, sugeria que sim. Ela não responde. Apenas alarga um pouco mais os lábios carmim num sorriso quase perverso. - Madame. Você não viu o que aconteceu aqui? A tempestade? De onde você está vindo? O questionário permanece sem resposta. Ao invés disso, a mulher põe-se em postura. Estendendo os braços, começa a desenhar com os dedos no ar, graciosamente, enquanto move o ventre com desenvoltura. Olhos fechados, o sorriso perverso. Uma música ainda não existia, mas os primeiros passos de uma dança airosa se iniciava. - Quem é você? – O homem interpela, agora começando a se desesperar. - Eu sou aquela que te dá propósitos e nenhum caminho. Eu sou a coreografia dos que dançam as horas que passam. Eu estou atrás de tudo que se move, e na frente de seus destinos. Você sabe quem eu sou... A música então reinicia. Da clareira minguada, tentáculos de escuridão começam a brotar e se apresentam bailando como consortes da dançarina, silvando e se retorcendo. Diante daquilo, o homem, aterrorizado, põe-se a correr, claudicando com a já ferida perna. O rumor de ventos e ondas quebrando atrás dele cresce. A música selvagem o estremece enquanto ele aperta o passo, ingloriamente. 91