LiteraLivre Vl. 2- n º 11 – Set / Out. de 2018
deboche. Os homens jogam, bebem e comem na taverna e as mulheres vestemse e agem com lascívia.
Assim, a solução era simples. Era preciso voltar-se aos velhos costumes. Assustados com as palavras do padre e o julgamento divino, os homens deixaram de jogar, comer e beber nas tavernas. Alguns tornaram-se vegetarianos e bebiam apenas água. As mulheres tentaram ser mais púdicas. Apesar do calor e humidade, vestiam roupas de inverno e desviavam o olhar sempre que passavam por algum moço, não fosse o desejo conquistá-las. As horas passadas em tavernas e quartos de amantes foram substituídas por visitas à capela de São Fulano, que até então nunca estivera tão cheia. Mas tudo era em vão. As pessoas continuavam a morrer como moscas.
Já se anunciava o fim eminente da aldeia. Surgiam ideias milenaristas. Deparando-se com esta ideia, Belcrano, largamente conhecido como um dos homens mais ébrios e devassos da aldeia, decidiu tomar outra atitude. Se iria morrer, para quê levar essa vida de ascetismo, reclusão e oração na capela? O melhor era aproveitar enquanto podia. Enfardaria todas as provisões que conseguisse reunir, emborcaria todas as garrafas da aldeia e seduziria todas as moças.
E algo de extraordinário aconteceu. Os dias passaram, a população foi decrescendo e Belcrano permaneceu incólume. Todos, inclusive o padre, estavam embasbacados. Como explicar tal fenómeno? Bem, se a prática não coincide com a teoria, o melhor é mudar-se a teoria. E os factos conduziam a uma única hipótese. O padre lá tentou acalmar os ânimos, mas, logo, surgiu um profeta moderno que afirmou que houvera uma mudança de paradigma. Vivia-se um período de transição na história do mundo. Numa primeira fase, o Deus violento do Antigo Testamento quisera a fealdade e submissão dos israelitas contra os infiéis. Na segunda fase, o Deus do Novo Testamento quisera a paz e a concórdia entre todos os homens e povos através do controlo das paixões e ganância. Iniciava-se agora, naquela aldeia escolhida por Deus, uma terceira fase: a de aproveitamento dos prazeres da vida.
A população apreciou esta teologia. Agora a violência e volúpia estavam legitimadas. Os homens já não precisavam de ir à taverna nem as mulheres de encontrar os seus amantes às escondidas, pois isso era exatamente o que Deus esperava que eles fizessem. Deste modo, foi construída, não uma capelinha, mas uma casa de alterne denominada Casa Belcrano.
Só o médico permanecia insatisfeito. Sabia que, para se adequar a teoria à prática, não bastava anunciar-se uma mudança na vontade divina, uma vez que nem se podia provar a existência de tal vontade. O médico procurou reconstruir a vida do pastor, a primeira vítima. Entrou na capelinha vazia de São Fulano e investigou-a. Quando analisou a estatueta de São Fulano, descobriu que, embora
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