Revista de Medicina Desportiva Informa Março 2019 | Page 15
prolongamento dos tempos de coa-
gulação, trombocitopénia e elevação
da creatinina e ureia por tubulopatia
por deposição de fragmentos de CK. 8
Na avaliação da urina corroboram
o diagnóstico a presença de sangue,
mioglobina com ausência simultâ-
nea de hemoglobina ou eritrócitos,
assim como a diminuição do ratio
nitrogénio/creatinina (<6:1) e cilin-
dros pigmentados no sedimento. 4,5
Os exames complementares de
diagnóstico adicionais incluem ECG,
gasimetria arterial que pode evi-
denciar uma acidose metabólica e
biópsia muscular. 4
Caso Clínico
Praticante de crossfit do sexo mas-
culino, 32 anos, leucodérmico, sem
antecedentes pessoais de relevo,
sem medicação habitual, hábitos
toxifílicos e sem alergias conhecidas,
que recorre ao Serviço de Urgência
por quadro clínico caracterizado
por mialgias intensas referidas aos
membros superiores, região dor-
sal e extremidades proximais dos
membros inferiores, 1 hora após
a realização de exercício físico de
volume muito superior ao habitual
(58’ sem intervalo). O indivíduo era
participante regular da modalidade
(3-5x/semana) desde há 16 meses
e tinha suspendido treinos 2 sema-
nas antes por tendinite aquiliana.
Tinha regressado aos treinos nessa
semana, tendo realizado 3 treinos
sem consequências na recuperação
e estava assintomático no dia do
treino em questão. Exame objetivo
sem alterações, sem excesso de peso.
Analiticamente apresentava uma
CK sérica de 30.689 U/L, mioglobina
sérica de 4.920 U/L, com função renal
e ionograma dentro da normalidade
e na avaliação urinária verificou-se a
presença de hemoglobina, sem outra
alteração. Foram realizados também
gasimetria arterial e ECG sem altera-
ções. Iniciou analgesia e hidratação
endovenosa vigorosa com soro fisio-
lógico 0.9% e alcalinização da urina
com bicarbonato de sódio 1,4%,
tendo ficado internado. Verificou-se
melhoria gradual das queixas álgicas
que acompanhou descida gradual
da CK (valor máximo de 36.647 U/L)
tendo alta ao 4º dia de internamento.
Após 6 semanas de convalescença
(fase 1 da reabilitação) onde se veri-
ficou regresso progressivo às ativida-
des quotidianas, recorreu à Clínica
das Conchas para acompanhamento
médico-desportivo com o intuito de
retornar à prática desportiva. No
final de cada fase de reabilitação
subsequente aferiu-se sempre o
estado de hidratação, perceção sub-
jetiva de mialgias, CK e creatinina
séricas antes de se avançar para a
fase seguinte.
Após confirmação que os valores
de CK eram inferiores a 5x o valor
de referência (1000 U/L), como
recomendado na literatura 3 , foi
dada autorização para o praticante
iniciar a fase 2 (tabela 1). Nesta
fase, o praticante iniciou plano de
reabilitação desenhado de forma
interdisciplinar (médico-fisiologista
de exercício). As sessões de treino
personalizado foram realizadas 3
vezes por semana, com a preocu-
pação de respeitar o nível de con-
dição física, sintomatologia e os
indicadores analíticos. Nesta fase
preconizou-se o regresso muito
gradual ao exercício físico, através
de exercícios com utilização do
foam roller, alongamento dinâmico,
e treino cardiorrespiratório de baixa
intensidade e curta duração. Após 2
semanas foi possível iniciar-se a fase
3, onde já se introduziram exercícios
de treino de força isométricos ou
dinâmicos, com elásticos ou TRX,
sendo que alguns exercícios foram
também realizados apenas com o
peso do corpo. Realizaram-se ainda
exercícios para ganho de mobilidade
articular e houve ligeiro acréscimo
da intensidade e volume no treino
cardiorrespiratório (tabela 1). Após
2 semanas avançou-se para fase 4,
caracterizada pelo início de treino
de força aproximando-se dos 25%
1-RM. No treino cardiorrespiratório
houve também ligeiro aumento da
intensidade, ocorrendo igualmente
a inclusão do método de treino por
intervalos (tabela 1).
Após a conclusão da fase 4 (3 sema-
nas), continuou o condicionamento
de força e de resistência muscular,
assim como o trabalho de endurance,
em regime livre já sem acompanha-
mento de instrutor e foi liberado
para reiniciar a prática de crossfit. Na
primeira sessão após o retorno, o
participante foi aconselhado a reali-
zar todos os exercícios do circuito a
25% da intensidade habitual e/ou do
número de repetições indicado, com
períodos de descanso maiores, ao
mesmo tempo que deveria manter
hidratação adequada. Na segunda
sessão, completou todas repetições,
mas ainda a 50% da intensidade/
frequência prescrita. Uma vez que
não houve repercussão clínica
nem analítica, à terceira sessão foi
autorizado clinicamente a retornar a
prática livre de crossfit (12 semanas
após alta hospitalar).
Discussão
Tratamento
Tendo em conta as potenciais
complicações da RIE, o principal
objetivo da terapêutica, para além
da evicção do fator desencadeante,
é a prevenção e tratamento das
mesmas através das correção dos
distúrbios hidroeletrolíticos identi-
ficados, hidratação oral ou endove-
nosa agressiva, alcalinização do pH
urinário e técnica de substituição
renal, e fasciotomias nos casos gra-
ves. 3 Nos casos ligeiros (maioria não
diagnosticados) verifica-se melhoria
em regime de ambulatório apenas
com hidratação oral e repouso. 4 Os
atletas com sintomas graves, lesão
renal aguda ou elevação da CK> 5x
limite superior do normal e mioglo-
binúria devem ficar internados para
hidratação intravenosa com soro
NaCl 0,9% (1-2L/h) para manter um
débito urinário de 200mL/h. Devem-
-se evitar diuréticos da ansa ou
tiazídicos pelo risco de agravamento
da função renal. 4
Reabilitação e return to play
Antes de planear o retorno ao exer-
cício físico/modalidade desportiva
deve ser avaliado o risco de recor-
rência no doente/atleta em causa.
Tietze et al estabeleceram em 2014
critérios de alto risco (tabela 2). 4
Na presença de algum dos crité-
rios de alto risco o doente deve man-
ter restrição de atividade física e ser
investigado (alguns exames incluem
eletromiograma, teste genéticos,
biópsia muscular, prova de esforço)
e/ou encaminhado para especialista
(por ex. doenças neuromusculares). 3
Na ausência de critérios de alto
risco (a maioria dos casos), o retorno
deve ser um processo gradual e
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