Revista de Medicina Desportiva Informa Maio 2020 | Page 20

Tema 2 Rev. Medicina Desportiva informa, 2020; 11(3):18-21. https://doi.org/10.23911/dopagem_sangue_2020_05 Dopagem sanguínea: uma Revisão Narrativa Dr. José Pedro Marques 1 , Dr. Paulo Pinheiro 2 , Dr. António Robalo Nunes 3 1 Médico especialista em Medicina Desportiva – Unidade de Saúde e Performance da Federação Portuguesa de Futebol; 2 Médico interno de Medicina Desportiva – Hospital Fernando Fonseca; 3 Médico imunohemoterapeuta – Hospital das Forças Armadas. Lisboa. RESUMO / ABSTRACT A capacidade de transporte de oxigénio para o músculo em atividade parece ser o fator limitante do desempenho em modalidades de endurance. Tal constatação tem motivado uma incessante procura por fármacos e métodos capazes de o incrementar, de forma mais ou menos lícita. O combate à dopagem sanguínea é feito atualmente com recurso a métodos diretos e também ao passaporte biológico. Esta revisão foca-se nas diferentes estratégias usadas na dopagem sanguínea, desde as transfusões aos substitutos do sangue passando pela eritropoietina. Endurance sports performance seems to be limited by oxygen transport capacity to the exercising muscle. Such finding has demanded an exhaustive search for substances and methods with such properties, regardless of how legal they are. Nowadays, approaches to fight blood doping encompass both direct testing and the athlete’s biological passport. In this review we focus on the different strategies used for blood doping – from blood transfusions to blood substitutes, not forgetting erythropoiesis stimulating agents. PALAVRAS-CHAVE / KEYWORDS Dopagem sanguínea, eritropoietina, substitutos do sangue, passaporte biológico Blood doping, erythropoietin, blood substitutes, biological passport Introdução A dopagem sanguínea refere-se ao conjunto de estratégias ilícitas usadas com o intuito de aumentar o oxigénio (O 2 ) disponível para o músculo e, dessa forma, obter ganhos no rendimento. Este objetivo pode ser atingido com recurso a: • transfusões de sangue ou produtos derivados do sangue • aumentos artificiais da captação, transporte e entrega de O 2 • qualquer forma de manipulação intravascular do sangue ou dos seus componentes • eritropoietinas e agentes que intervêm na eritropoiese. Na Figura 1, identificam-se os potenciais alvos para a dopagem sanguínea. Nas últimas décadas a medicina tem registado importantes avanços no tratamento de condições clínicas, como a anemia e a doença renal crónica. Parte desses avanços traduz um esforço da indústria farmacêutica para desenvolver fármacos que aumentem a hemoglobina (Hb) e a capacidade de transporte e disponibilização de O 2 . O mundo do desporto observou com atenção estes novos desenvolvimentos e percebeu o potencial ergogénico que poderia advir da utilização de alguns destes fármacos. Porque recorrem os atletas à dopagem sanguínea? Em desportos de endurance o desempenho é em grande medida determinado pela capacidade de fornecer O 2 ao músculo em atividade. Esta depende do débito cardíaco, da capacidade de transporte de O 2 pelo sangue e da sua extração pelos músculos. No entanto, em indivíduos bem treinados, a capacidade de transporte de O 2 parece ser o fator limitante do consumo máximo de O 2 (VO 2 max). 1 Tendo em conta que a capacidade de transporte de O 2 é determinada pela quantidade de hemoglobina, aumentos da sua massa total (e não de medidas relativas, como [Hb] plasma ) traduzem- -se no aumento do VO 2 max e num potencial aumento do desempenho em provas de endurance. 2 Estimativas apontam para que um aumento de 1g de Hb eleve o VO 2 max cerca de 3,5ml. 3 Tendo em conta que um concentrado eritrocitário contém entre 50-70g de Hb podemos esperar aumentos do VO 2 max da ordem dos 175-245 ml. Em termos de desempenho isto poderia traduzir-se em ganhos de 30 segundos a 1 minuto numa corrida de 10km. 4 Alguns investigadores contestam o alegado potencial ergogénico associado ao aumento da massa total de Hb, sendo Heuberger o mais notável entre eles. 5,6 Este autor conduziu um ensaio clínico (randomizado, duplamente cego e controlado com placebo) com 48 ciclistas amadores a quem foi administrada eritropoietina durante oito semanas. Os outcomes primários foram medidos numa prova máxima (potência máxima debitada, VO 2 max e medidas de potência e VO 2 nos 1º e 2º limiares ventilatórios) e em condições de esforço submáximo (potência média, VO 2 e frequência cardíaca), em laboratório e num teste de terreno. No grupo a quem foi administrada eritropoietina observou-se melhoria dos parâmetros obtidos na prova máxima. O mesmo não se observou na prova submáxima em laboratório e na estrada (mais relevantes por terem maior transferência para a realidade clínica/desportiva), o que levou os autores deste estudo a questionarem os alegados efeitos ergogénicos da eritropoietina. 7 Os críticos deste trabalho apontaram o tratamento estatístico e a utilização de atletas amadores (versus de elite) como lacunas do estudo. 8 O potencial da dopagem sanguínea para melhorar o desempenho em desportos de endurance não passou despercebido e é conhecido pelos atletas pelo menos desde a década de 70 (Quadro), altura em que as transfusões eram bastante populares. No final da década de 80, a recém-comercializada eritropoietina recombinante rapidamente se tornou um sucesso nalguns meios desportivos. Assistiu-se, nessa altura, a evolução bastante significativa nas melhores marcas em muitas provas de longa distância. 4 Ao recordar esse período, Greg Lemond (várias vezes vencedor do Tour) referiu que “estava na melhor forma de sempre, os tempos parciais em treino eram os mais rápidos da sua carreira… mas algo estava diferente no Tour de 1991. Ciclistas que no passado não conseguiam seguir na sua roda 18 maio 2020 www.revdesportiva.pt