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Rev. Medicina Desportiva informa, 2017, 8(3), pp. 20–26 XXVII Curso de Reabilitação e Traumatologia do Desporto Coimbra, 28 Janeiro 2017 Organizadores: Prof. Doutor J. Páscoa Pinheiro, Dr. Pedro Lemos Pereira Tema 1. Como tratar? Atualidades e controvérsias A dor nocicetiva Dr. José Pedro Marques, Coimbra Muitas vezes usados como sinónimos, dor e nociceção não são a mesma coisa. A nociceção corresponde apenas à deteção, transmissão e processamento do estímulo nóxico. O estímulo nóxico é interpretado pelo sistema nocicetivo como algo real ou potencialmente lesivo para o indivíduo. Os neurónios que detetam e veiculam esta informação desig- nam-se nocicetores e estão locali- zados em todos os tecidos do corpo, com a notável exceção do cérebro. Globalmente constituem um autên- tico sistema de vigilância, ativado por estímulos de natureza mecânica, química ou térmica. A dor é um fenómeno complexo. Os nocicetores primários e os localizados na espinal medula são, de facto, informadores importan- tes, projetando informação para o cérebro mas, em última análise, não são suficientes nem necessá- rios para a dor. O entendimento sobre a moderna neurobiologia da dor pode ser resumido nas seguin- tes frases: 20 Maio 2017 www.revdesportiva.pt • A dor deve ser entendida como um output protetor do cérebro e não como marcador de dano tecidular • A dor emerge do cérebro e reflete a avaliação que este faz da ameaça à integridade corporal e conse- quente necessidade de ação • A dor é agora considerada uma experiência consciente que pode estar, e frequentemente está asso- ciada à nociceção, mas é sempre modulada por uma miríade de fatores neurobiológicos, ambien- tais e cognitivos. Para melhor compreender a dor em traumatologia desportiva há dois conceitos que importa perceber: sensibilização periférica e central. A primeira corresponde à redução do limiar de excitabilidade dos noci- cetores primários na sequência de uma lesão aguda. A sensibilização periférica promove a proteção e subsequente reparação tecidular. A segunda traduz sensibilização dos nocicetores ao nível da medula e da rede neuronal cortical que codifica o output dor. Este fenómeno justifica o motivo pelo qual, à medida que se evolui para a cronicidade, a dor está cada vez mais dissociada da lesão que lhe deu origem. Clinicamente traduz-se em fenómenos como a hiperalgesia, alodínia e dor difusa. A abordagem terapêutica da dor é complexa e implica: • identificar os principais fatores que contribuem para a avaliação que o cérebro faz do dano tecidu- lar e quantificar esses contributos; • identificar os principais fatores desencadeantes da dor; • detetar sinais que sugiram sensi- bilização central ou periférica; • desenvolver estratégias com o intuito de minimizar os fatores desencadeantes identificados; • reabilitação com ênfase na vertente física e cognitiva, com exposição gradual a movimen- tos, tarefas, estímulos sociais, ambientais e cognitivos – processo que conduzirá, potencialmente, à normalização das alterações corti- cais e medulares. Tod a esta complexidade neuronal tem implicações óbvias no processo de reabilitação. Um exemplo prático seria o de um atleta que sofreu uma entorse grave do tornozelo numa final importante. Este indivíduo só estará completamente reabilitado quando tiver sido exposto a todo o tipo de estímulos que impliquem dano potencial para aquele torno- zelo, sem recidivas. Só aí teremos assistido à normalização (ou algo próximo disso) das alterações corti- cais e medulares despoletadas por aquela lesão, naquele contexto. A síndrome de dor regional complexa Dr. Pedro Figueiredo, Dr. João Silveira. Coimbra A Síndrome de Dor Regional Complexa (SDRC) com- preende uma variedade de esta- dos dolorosos de índole regional e predomínio distal, que excede em amplitude e duração os sintomas habituais no decurso de um episódio nocicetivo, e que frequentemente têm como consequência distúrbios motores significativos e de evolução variável no tempo. A dor persistente, desproporcional ao evento desen- cadeante, associada a combinação de sinais e sintomas sensitivos, vasomotores, sudomotores e moto- res/tróficos permitem estabelecer o diagnóstico. No atleta com SDRC pode instalar-se um ciclo crónico de amplificação da dor se esta entidade não for identificada e tratada. A dor, inicialmente localizada, sofre inten- sificação progressiva, com relutância na utilização do segmento e even- tual imobilidade segmentar. Pode tornar-se permanente, culminando em “evicção” do segmento afetado, contratura muscular, alterações na postura segmentar e na marcha, e dor antecipada ou cinesiofobia. Sur- gem frequentemente nestes doentes outros tipos de sinais e sintomas, para além da dor, nomeadamente “hipervigilância”, hipersensibilidade, termodesregulação, assim como dis- funções autonómica e neuromotora. Nas crianças e adolescentes com SDRC, o género feminino é predomi- nante (7:1), o fator desencadeante pode ser um traumatismo minor, muitas vezes não identificável, o membro inferior é mais afetado que o membro superior (5:1), a clínica tem frequentemente alterações neu- rovegetativas, a cintigrafia óssea pode apresentar zonas de hipocaptação, os fatores psicológicos são mais óbvios e o prognóstico é favorável, apesar de não serem raras as recidivas. O tratamento da SDRC no atleta jovem incide no controlo da dor e retoma funcional do segmento, tendo por base uma filosofia de “reativação funcional” e prevenção da cinesiofobia. O objetivo da farma- coterapia, psicoterapia e das técni- cas invasivas é permitir a atividade segmentar e global, assim como melhorar a capacidade funcional. A abordagem multidisciplinar ab initio parece ser a mais pragmática, eficaz e custo-efetiva. Nas crianças e ado- lescentes, o tratamento em regime internamento pode ser benéfico. A fisioterapia, a terapia ocupacional, o uso de técnicas de Motor Imagery (pensar o movimento) e a terapia por espelho apresentam um razoável nível de evidência sustentada em RCTs. O mesmo não se aplica para a maioria das estratégias farmacológi- cas, razão pela qual RCTs de fárma- cos para patologias de fisiopatolo- gia similar e a experiência clínica servem de guia aos tratamentos. A identificação do “mecanismo” álgico predominante, como sendo neuropá- tico, vasomotor, distónico ou ósseo é a chave do sucesso terapêutico. Na SDRC predominantemente neuropática sugere-se a realização de analgesia, por exemplo, com lidocaína transdérmica e, eventual- mente, com opioides. Os bloqueios nervosos periféricos são a 1ª linha dos tratamentos invasivos, principal- mente na dor simpático-mediada. Na SDRC vasomotor agudo, os corticoesteroides orais apresen- tam nível evidência 1. Utilizam-se quando predominam sinais infla- matórios (SDRC “quente”), nomea- damente a prednisona 30 mg/dia durante 2 a 12 semanas. Quando os distúrbios são mais profundos podem realizar-se bloqueadores dos canais de cálcio, simpaticolíticos e/ ou bloqueios nervosos periféricos. Nos casos em que predominam a alodinia e a hiperalgesia reco- mendam-se anticonvulsivantes, nomeadamente carbamazepina (600 mg/d), com um nível evidência 2, em particular para SDRC 2, isto é, com lesão nervosa periférica. Os bloquea- dores dos canais de cálcio podem ser usados. Há indicação para realizar terapêutica com antagonistas dos recetores do NMDA, sendo que o único fármaco com RCTs é a gaba- pentina, que apresenta um nível de evidência limitado. Se a SDRC for acompanhada de distonia, o baclo- feno intratecal é uma arma terapêu- tica a equacionar. A SDRC com osteopenia, imobi- lidade e alterações tróficas pode beneficiar de calcitonina intra-nasal 100U, 3 id, durante 3 semanas, assim como de alendronato IV 300mg id durante 3 dias. Ambos os fármacos apresentam nível de evidência 2, sendo último suportado por um RCT. Quando as queixas de depressão, ansiedade ou insónia estão presen- tes há lugar a terapêutica com seda- tivos, analgésicos antidepressivos / ansiolíticos e psicoterapia. Outros fármacos podem ter utilidade: vitamina C para preven- ção primária ou secundária, DMSO tópico, na SDRC “frio” e tadalafil oral. Sabe-se que a abordagem da com- ponente disfuncional psicológica pode ter um papel preponderante no sucesso terapêutico. A educação para a patologia deve-se realizar junto do atleta doente, a família e os treinadores. Quando houver dificul- dade na progressão do programa de reativação funcional, é mandatória a avaliação psicológica, na medida em que intervenções dirigidas podem e devem ser implementadas. A SDRC é um desafio diagnós- tico em Medicina. A epidemiologia e a clínica diferem no adulto, na criança e no jovem desportista. O sucesso da intervenção baseia- -se na “prevenção primária”, na identificação precoce de quadros sugestivos, ainda que não comple- tos. A abordagem multidisciplinar integrada é essencial e a estratégia terapêutica deve ser “agressiva” ab initio (educação do doente e família / treinador, programa de reabilitação precoce, tratamentos adjuvantes se necessário). Na criança/adolescente é desejável o acompanhamento a médio-longo prazo pela frequência da recidiva. Tema 2. Função e prognóstico – atualidades Dor crónica e gestão de esforço Dr. Pedro Saraiva, Coimbra Na abordagem da gestão da dor cró- nica no desportista é fundamental entender que esta, ao contrário da dor aguda, não tem o fator protetor. A dor crónica é uma experiência multifatorial afetada por fatores biológicos, fisiológicos, psicológicos e sociais. A sua compreensão baseia- -se no conhecimento do modelo bio-psico-social de Wiese-Bjornstal, em que o atleta após experimentar um episódio doloroso pós-lesional pode confrontar a dor e, sem receio, entrar num processo de resolução e Revista de Medicina Desportiva informa Maio 2017 · 21