Revista de Medicina Desportiva Informa Julho 2019 | Page 27
Dr. Alexandre Miguel
Mestre
Advogado. Abreu &
Associados – Sociedade
de advogados, SP, RL –
Lisboa
Semenya: da ética (desportiva) à
proteção de direitos humanos
https://doi.org/10.23911/Semenya_etica_2019_7
I am Moskgadi Caster Semenya. I am a
woman and I am fast
No passado dia 30 de Abril de 2019,
o Tribunal Arbitral do Desporto de
Lausanne (CAS) validou a regula-
mentação da IAAF que impõe a
atletas como Semenya – atletas
com diferenças de desenvolvimento
sexual, que sendo biologicamente
mulher tem um desenvolvimento
sexual atípico (o hiperandroginismo)
– que se mediquem para reduzir os
níveis de testosterona produzidos
naturalmente pelo seu corpo, de
molde a serem elegíveis a partici-
par em determinadas competições
internacionais de atletismo. A atleta
interpôs recurso junto do Supremo
Tribunal Suíço que, sem se pronun-
ciar quanto ao mérito, decidiu de
imediato suspender a aplicação da
regulamentação da IAFF. Aguarda-se
decisão final.
Sem prejuízo de, à data em que
escrevo, ainda não conhecer o
acórdão do CAS na íntegra (apenas
são públicos o sumário executivo
e o comunicado de imprensa), algo
para mim é inequívoco: a regra
controvertida viola a reserva da vida
privada. Por outro lado, põe em causa
a autodeterminação da identidade do
género e expressão do género. Como
coloca em crise o direito à proteção
das características físicas/sexuais.
Afronta o direito ao livre e pleno
desenvolvimento da personalidade
humana, inscrito na Declaração
Universal dos Direitos do Homem.
Mais: estigmatiza, ostraciza, exclui,
marginaliza, segrega atletas que, pela
sua condição física, são mais vulne-
ráveis, no desrespeito pela dignidade
da pessoa humana, Princípio Funda-
mental do Olimpismo, constante da
Carta Olímpica. Afronta o direito ao
desporto, ao restringir, a meu ver de
forma discriminatória, arbitrária e
desproporcionada (ainda que, claro,
a ética desportiva, a integridade das
competições, sejam, por si, funda-
mentos bem razoáveis), a elegibi-
lidade para participação de certas
mulheres em determinadas compe-
tições: 400m, 800m e 1500m (não em
todas as competições, o que também
não será despiciendo…). Ora a Carta
Olímpica, texto a que as federações
internacionais devem obediência,
enquadra a “prática desportiva”
como “um direito humano”, que não
deve ser objeto de “discriminação
de qualquer tipo”. Também a Carta
Internacional da Educação Física e do
Desporto da UNESCO consagra o des-
porto como “um direito fundamental
de todos”, dando na sua nova versão
ainda mais enfoque a este direito no
prisma do princípio da igualdade, na
vertente da não discriminação. E não
se esqueça que estamos a falar de
desporto de elite, profissionalizado…
onde o direito ao trabalho e a não
discriminação na prestação de servi-
ços devem imperar!
Mais: há aqui uma discriminação
em razão do sexo ou do género (dis-
tinguindo-o para fins desportivos),
em regras que se focam na elegibili-
dade… das mulheres (ou mulheres
com determinado perfil fisiológico),
em competições… de mulheres, no
hiperandroginismo… feminino. Ora
uma das mais importantes conven-
ções de direitos humanos da ONU,
a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres, prescreve que a
igualdade entre homens e mulheres
pressupõe as mesmas possibilida-
des de participar ativamente nos
desportos.
Se Semenya é um exemplo de
hiperandroginismo, tal deve-se
ao facto de o seu corpo produzir
um nível excecionalmente alto de
testosterona, mas de forma natural.
Ora, se um atleta não é responsável
por violação de normas antidopagem
quando se demonstre que os níveis
da substância proibida no seu corpo
são produzidos endogenamente,
por que razão se ‘pune’ as atletas
intersexo por idêntico motivo? Valerá
a pena reler outro acórdão do CAS, no
Caso Chand (atleta Indiana, que em
2014, com 19 anos, recorreu ao CAS, e
através de uma decisão arbitral inter-
locutória pode ir aos Jogos Olímpicos
do Rio 2016) que lembra que há
atletas de elite com mais visão, mãos
maiores, mais capacidade aeróbia,
superior resistência à fadiga, uma
variação genética que os favorece ao
nível de músculos… tudo caracte-
rísticas naturais, isto é, a vantagem
comparativa na performance despor-
tiva é… natural… resulta do talento,
dedicação, trabalho e fatores genéti-
cos, devendo, como tal, serem aceites.
Por conseguinte, como sustentar
que Semenya nas pistas não é sinó-
nimo de igualdade e de equidade
entre competidores? Como aludir a
uma competição injusta ou adulte-
rada… e invocar que é de forma não
objetivamente justificada?! Injusto,
diria, é sim tratar questões como
diversidade e inclusão no desporto
numa lógica atentatória dos direitos
humanos, em nome da ética despor-
tiva que, com o devido respeito, não
pode considerar-se desvirtuada ou
manipulada por fatores… naturais.
E mesmo que estivesse a ser colo-
cada em crise a ética no desporto,
convém não esquecer a abordagem
da Ethics of care que provém do artigo
1.º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem: Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dig-
nidade e em direitos, ou seja, um trata-
mento ético implica tratar todos os
cidadãos neste espírito..., logo sem…
tratamentos químicos forçados...
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