Revista de Medicina Desportiva Informa Julho 2019 | Page 24

Rev. Medicina Desportiva informa, 2019; 10(4):22-24. https://doi.org/10.23911/Semenya_2019_7 A sina de Semenya: uma benção, uma maldição Dr. Basil Ribeiro, V N Gaia Mokgadi Caster Semenya nasceu a 7 de janeiro de 1991, na província sul-africana de Limpopo. Viveu com a sua família numa aldeia junto da fronteira com o Botswana, com um irmão e três irmãs. Semenya nasceu e cresceu diferente. O seu corpo produz níveis elevados de testosterona. Não é o habitual, mas é o seu normal. Tem uma vantagem biológica, que não a produziu, mas que é dela, e esta vantagem natural é uma desvantagem enorme para as adversárias. Mas é o seu normal. Ela faz parte do grupo de atletas agora denominados de Atletas com Diferenças Sexuais (ADS), depois de vários termos terem sido usados: “intersexuais” ou “com diferenças de desenvolvimento sexual”. De acordo com a IAAF, a maioria das atletas femininas têm níveis de testoste- rona entre 0.12 e 1.79 nmole/l, ao passo que os ADS têm valores entre 7.7 e 29.4 nmole/l. Por outro lado, o Comité Olímpico Internacional refere que “99% das mulheres tem níveis de testosterona inferiores a 3.0 nmole/l”. A questão que as entidades desportivas reguladoras colocam é saber se é permitido que uma atleta com níveis elevados de testosterona compita ao lado de outras atletas com níveis considera- dos normais. É um tema desportivo da atualidade, de difícil resposta, pelo que as opiniões são várias. Terá de haver uma resposta, mas será sempre penalizadora para alguém. A história de Semenya no des- porto é longa e já com muitos anos (ver Quadro). É feita de sucessos, de vitórias, de controlos de antidopa- gem e de suspensão desportiva, mas 22 julho 2019 www.revdesportiva.pt sempre com interferência na sua vida pessoal, demasiado exposta e comentada. Desabafa referindo que tem “sido submetida a um escrutínio injustificado e invasivo dos detalhes mais íntimos e privados do meu ser”. Às vezes este é também o preço a pagar pelo atleta de sucesso. A sua vida tem agora novo episódio. Três juízes do Tribunal Arbitral do Desporto de Lausana, na Suíça, deliberaram no passado dia 01 de maio, num acórdão de 165 páginas: os Atletas com Diferenças Sexuais devem diminuir os seus níveis naturais elevados de testosterona, mas … apesar de ser uma decisão discriminatória, “esta discriminação é um meio necessário, razoável e proporcional para atingir o objetivo da IAAF de preservação da integri- dade das atletas femininas”. A IAAF indica que “valores mais altos levam ao aumento de 4,4% na massa muscular, 12 a 16% na força e 7,8% na hemoglobina”. Ao fim e ao cabo, o que se pretende é defender os direitos da maioria dos atletas femininos, descurando os direitos de uma minoria, protegendo-se assim os interesses do grupo maioritário. Mais que científica, é talvez uma discussão filosófica. Os atletas com níveis “habituais” (vulgo, “normais”) poder-se-ão considerar discrimina- dos em relação a atletas que têm os seus níveis elevados “normais”, embora não habituais, não seme- lhantes aos dos restantes atletas. Sabemos o que é “o habitual”, mas o que é “o normal” no desporto? Existe limite de estatura no basquetebol? O jogador com 2,10m de estatura tem vantagem competitiva em relação a outro também alto, mas apenas com 193cm. A maioria dos atletas estão em desvantagem … apesar de altos. E quem aparecer com muitas fibras tipo II, mais do que “o normal”, na linha de partida da corrida de 100 metros? E o caso de Michael Phelps que tem a envergadura, a distância entre os dedos das duas mãos com os braços abertos, igual 197,5cm, ao passo que a estatura é “apenas” de 190cm, quando a maioria tem estes valores quase iguais? “Mas é Quadro – A história de Semenya 2009 31 julho Campeonato Africano Júnior: 800 metros – medalha de ouro e melhor tempo do ano (1 min 56.72 seg) Agosto Antes do Campeonato do Mundo, em Berlim – teste de género (a atleta não sabia qual era o objetivo do teste) 19 agosto Campeonato do Mundo: 800m – medalha de ouro (1 min 55.45 seg) Após a vitória, há fuga de informação para imprensa acerca do seu teste para avaliação do género Novembro Relatórios revelam que tem caraterísticas femininas e masculinas 6 julho A IAAF autoriza o retorno à competição 22 agosto Prova da IAAF, em Berlim: ganha a medalha de ouro 2012 11 agosto Jogos Olímpicos de Londres: 800m – medalha de prata Acaba por receber a medalha de ouro após a eliminação da 1ª clas- sificada por dopagem 2016 20 agosto Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro: 800 m – medalha de ouro A participação é questionada por outros atletas 2017 4 julho A investigação solicitada pela IAAF conclui que níveis elevados e testosterona dão “vantagem competitiva” 2018 26 abril IAAF: a partir de 01/11/018 o nível máximo de testosterona para participar em provas de 400 – 1600 metros = 5 nmole/l 19 junho Revela que contestará as novas regras da IAAF 18 fevereiro Inicia o processo no TAS 1 maio Perde o processo ?? Processo entregue Tribunal Suíço contra a IAAF 2010 2019 IAAF – Associação Internacional de Federações de Atletismo; TAS – Tribunal Arbitral do Desporto