Relatório da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2015 | Page 72

RELATÓRIO DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DA ALERJ | 2015 | 71
sistemas políticos de urbanização e policiamento como estratégias para “ neutralizar e disciplinar ” a população pobre . O fim da escravidão e a implantação da república , fenômenos ocasionados quase concomitantes , iniciaram essa construção do medo , uma vez que não romperam com a ideia elitista de ordenamento no país , formando uma cultura socioeconômica e política , como ressalta Vera Malaguti 22 .
Malaguti argumenta que o medo branco da rebelião negra , da descida dos morros , aumenta com o fim da escravidão e da monarquia , que produz uma república excludente , intolerante e truculenta a partir de um projeto político autoritário . Uma cultura do medo criada por ser necessária para implantação de legislação e a execução de políticas públicas no espaço urbano , seja em infraestrutura ou na gestão de segurança na cidade , que privilegia a elite e a classe média , subjugando a massa pobre . Principalmente , no Rio de Janeiro – que sendo a capital simbólica do país – vitrine da massa negra , escrava , liberta que se transformou num gigantesco Zumbi a assombrar a civilização , criando estratégias de sobrevivências próprias na ausência de políticas públicas sociais , dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas , ressalta Malaguti .
Um medo forjado na síndrome do liberalismo oligárquico brasileiro , que funda a nossa República carregando dentro de si o princípio da desigualdade legítima que herdara da escravidão , que segue produzindo seletividade . Não é à toa que juventude pobre e negra é o perfil predominante das pessoas presas ou em medidas socioeducativas devido a atos ilícitos relacionados à desordem . A seletividade do sistema penal ( polícia , judiciário ) do Estado permite que a população pobre seja alvo do controle repressivo do Estado .
As estratégias de criminalização da pobreza não estão somente em manter essa população à margem do Estado . Os bairros empobrecidos se configuram como o espaço aonde o alvo deve ser atingido no enfrentamento ao medo protagonizado pelo Estado em busca de ‘ soluções ’ para dissipar a sensação de insegurança . O medo molda cotidiano das grandes cidades , desde seus contornos arquitetônicos até o comportamento de seus habitantes . Trata-se de uma categoria de construção discursiva do social que se expressa como fio condutor de subjetividades . O medo é utilizado como ferramenta política de controle social , coerção e extermínio da população pobre por governos que , nos dias atuais , também utilizam os meios de comunicação comercial como braço estratégico para a aplicação dessa política .
O sociólogo Barry Glassner 23 denomina como “ cultura do medo ” todas as situações fabricadas por alarmistas , tendo como seus protagonistas : a mídia 24 , o mercado , a religião e a política . Dentre os medos “ válidos ”, aqueles que são necessários ao ser humano porque alertam sobre o perigo ; e os disseminados por essa cultura : os medos “ falsos ou exagerados ”, Glassner classifica a mídia como um " arauto do medo ". Isto porque fomenta a cultura do medo ao destacar crimes , enfatizar a violência , adulterar números , dados estatísticos , manipular a informação , dominar o noticiário , e principalmente , aproveitar-se dos amedrontados para comercializar o pânico como produto .
22 . Malaguti , Vera . O medo na cidade do Rio de Janeiro : dois tempos de uma história . Rio de Janeiro : Revan , 2003 .
23 . GLASSNER , Barry . The Culture of Fear . New York : Perseus Books Group Francis , 2003 .
24 . “ Exceções há ”, diz Glassner ( 2001 ), porém , a mídia está no centro do culto da cultura do medo .