Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 50
preciso lembrar que não foram poucas as
resistências, os massacres e as invasões
que dizimaram populações inteiras em todos os continentes ao longo de séculos.
Muitos grupos, mesmo alguns que não
tiveram direitos violados, ofereceram resistência e conseguiram gradativamente criar
as primeiras normas de direitos humanos.
Algumas delas, datadas do intervalo entre
os séculos XVII e XIX, consolidaram os eixos considerados ainda hoje fundamentais
na definição do que ent endemos por direitos humanos. Mesmo que sigamos vivendo
em um mundo desigual, é importante reconhecer o movimento que alastrou para
um grande contingente da população humana instrumentos jurídicos forjados há
mais de dois séculos para proteger grupos
específicos.
incluindo quase 10 mil militares. Entre o
regime nazista e o regime militar no Brasil
não há apenas um abismo no tempo, mas
uma chaga no brio de todos nós pois no
primeiro caso – a despeito do inominável
sofrimento – a histórias veio à tona em uma
infinidade de matizes, ao passo que no Brasil a atuação dos agentes do Estado nessas
graves violações continua sendo um enigma sem solução. Levando em consideração
que muitos personagens dessa história de
violações silenciada ainda estão vivos, por
algum tempo ainda teremos testemunhas
às quais desejamos coragem para enfrentar
os fantasmas e a violência que nos rondam
até hoje, impedindo-nos de construir uma
outra história do nosso país, inspiradora de
ações estratégicas para que os crimes da ditadura nunca mais se repitam.
Justamente por não se aterem a esta dimensão mais orgânica da constituição dos
direitos humanos como um bem social amplo, seus detratores reduzem sua existência e sua garantia ao Estado. Seja quando
garantidos, seja quando violados, é apenas
ao Estado que é atribuída agência e responsabilidade. Embora seja fácil constatar
que as declarações de direitos registradas
em leis não correspondem à sua execução, é de suma importância atentar para
os riscos de desconsiderarmos os avanços.
A despeito de suas debilidades, precisamos
entender de maneira concomitante tanto a
formação dos direitos humanos como um
tesouro universal – que pertence a todos –
quanto sua feição particular em contextos
marcados por processos históricos específicos. Com um olhar atento a tal caráter sui
generis, que incorpora avanços e retrocessos, somos capazes de nos aproximar de
enigmas de diversas ordens, como o foi o
Golpe Militar de 64 e tantos outros que lhe
foram contemporâneos. Tal compreensão
mais acurada nos permite ir além da pura
estupefação que nos domina ao pensarmos
que aquele regime totalitário se estabelecia
depois, por exemplo, da queda do regime
nazista. A barbárie e a atrocidade se repetem vezes sem fim, entretanto, o que não
nos é permitido é deixar que a repetição
aconteça como farsa. Se houve punição
para os crimes do nazismo, por que razão,
até hoje não temos um registro exaustivo
das vítimas do regime militar no Brasil?
Não somente daquelas que à época foram
identificadas, presas, julgadas, levadas a se
exilarem ou mortas após longas torturas,
mas também de pessoas anônimas que foram torturadas, demitidas, perseguidas e
prejudicadas em função do golpe militar,
O caso brasileiro suscita debates a respeito
da urgência de se tratar de tais sofrimentos com novas lentes. Não mais com o foco
exclusivamente na verdade dos fatos, mas
com o objetivo maior de, a partir do conhecimento e dos esclarecimentos dos fatos,
nos tornarmos capazes de delimitar e qualificar as responsabilidades institucionais,
sociais e políticas daquele período a fim de
transformar radicalmente um paradigma de
governo que nos acompanha até hoje, segundo o qual o Estado tem a prerrogativa
de promover matanças – impunemente.
As experiências de outras comissões da
verdade no mundo ajudaram a cicatrizar/
curar feridas, ao revelarem publicamente as
atrocidades cometidas pelo próprio Estado.
O que a Comissão da Verdade do Rio tem
em mãos hoje é a possibilidade de mostrar
as causas e as consequências dessas violações e, posteriormente, impulsionar reformas políticas e institucionais necessárias
para evitar a repetição dessas violações. A
Comissão não tem caráter persecutório,
não pode e nem deve, portanto, ser uma
alternativa para substituir qualquer autoridade com poder de julgamento. Ao mesmo tempo, a Comissão não pode se guiar
somente pelo passado, porque a análise do
ontem deve servir para subsidiar um novo
começo, uma nova ordem política, ou seja,
deve reunir elementos para que a sociedade
possa atuar de forma preventiva, evitando
a repetição de violações contra nossa humanidade.
Apesar deste desejo e inspiração, as recomendações que a Comissão do Rio fará ao
Estado em seu relatório final só serão possíveis se soubermos o que ocorreu e como
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