Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 44
Através da edição de decretos-leis, da elaboração dos chamados Atos Institucionais,
da adoção de maciça propaganda para forjar um falso nacionalismo e da estruturação
de um aparelho punitivo contra os opositores ao regime empresarial-militar, a ditadura garantiu o aprofundamento de certo
padrão de acumulação capitalista atrelado
às necessidades do mercado transnacional,
promoveu um processo de ocidentalização
do país (baseado no “American Way of
Life”) e produziu impérios econômicos. O
regime empresarial-militar buscou, assim,
derrotar os movimentos populares organizados, arruinar projetos de distribuição da
riqueza social que ameaçavam mudar a
relação capital-trabalho no país, e destruir
as instituições democrático-representativas
que promoviam o pluralismo político. A política econ ômica adotada pelos militares foi
fundamental para a sustentação da nova
institucionalidade autoritária, a construção
do aparato repressivo e a viabilização dos
serviços de censura, de vigilância e controle.
Existe, portanto, uma ligação direta entre a
sala de tortura, o pau-de-arara, a “geladeira” e as fontes de financiamento empresariais provindas daqueles que, em última
instância, se beneficiavam do modelo de
desenvolvimento do regime militar3.
A ditadura deixou visíveis sequelas em
nossa sociedade. Depois de trinta anos do
fim do regime, suas consequências permanecem até os dias atuais como obstáculos
para o desenvolvimento social e político de
nosso país. Nesse ponto, é preciso concordar com aqueles que afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta do ConeSul, não em razão do número de mortos ou
desaparecidos, mas em razão de tudo que
ainda resta deste regime em nossa sociedade atual4. Fomos o último país da América
Latina a instituir uma Comissão Nacional da
Verdade, não responsabilizamos os autores
das graves violações de direitos humanos
ocorridas naquele período e distorcemos a
história para justificar as barbáries do regime, persistindo em manter um projeto autoritário de conciliação cujo símbolo central
é a lei de anistia de 1979, interpretada a
partir da “reciprocidade” entre os crimes
políticos e aqueles cometidos pelos agentes estatais. Assim, chegamos em 2014 sem
que as Forças Armadas reconhecem os horrores dos anos de chumbo. Pior, no aniversário de 50 anos do golpe, a cidade de São
Paulo foi palco de uma passeata onde setores conservadores da elite brasileira pediram
a volta dos militares. Apesar do pequeno
numero de participantes, tal acontecimento
não deixa de ser um triste sintoma de um
passado que ainda nos assombra.
Fatos recentes explicitam os limites do processo de justiça de transição em curso no
Brasil – processo esse que se intensificou a
partir de 2012, com a instalação da Comissão Nacional da Verdade e das comissões
estaduais, municipais e setoriais que se espalharam pelo país. No dia 14 de novembro de 2014, o Ministério Público Federal
(MPF) e a Polícia Federal (PF) realizaram
uma operação de busca e apreensão no
Hospital Central do Exército (HCE) em Benfica, Rio de Janeiro. Além de constatar que
aquela unidade do Exército ocultou documentos que, meses antes, foram objeto de
diligência conjunta da Comissão Nacional
da Verdade e da Comissão da Verdade do
Rio, a operação descobriu que membros e
integrantes da referida delegação foram,
posteriormente, objeto de investigação
preliminar daquela unidade militar: o MPF
chegou a encontrar uma pasta do Exército
com nomes, fotografias e informações de
integrantes das duas comissões.
A progressiva militarização do Estado, as
seguidas intervenções das Forças Armadas
no espaço urbano (por exemplo, em 1992,
1994, 2008, 2010, 2014, para ficar só na
cidade do Rio de Janeiro), o avanço de programas de segurança orientados pela lógica
da guerra ao “inimigo”, os altos índices de
letalidade das nossas polícias, a criminalização dos movimentos populares, o oligopólio das grandes empresas de comunicação e
a conivência de nossas instituições contemporâneas com antigas figuras da ditadura
que ainda ocupam cargos políticos, são indícios de arranjos de poder – reorganizados,
intensificados e elaborados pela ditadura –
que até hoje continuam a funcionar. A violência do presente não pode ser, portanto,
desassociada do nosso passado repressor.
Desconsiderar os limites de nossa transição
democrática seria um erro, posto que eles
confirmam a perseverança de uma tradição institucional e de uma cultura política
ainda amarradas a formas de autoritarismo
não plenamente superadas. O esforço de
resgatar o passado ditatorial para decifrar o
presente, contudo, não deve ser entendido
como um fim em si mesmo, mas como um
meio para a ação política. No lugar de naturalizar ou esquecer o passado em nome
de um dito “progresso”, urge atualizá-lo
a partir dos problemas que se colocam no
presente. A luta pela memória, justiça e verdade é, assim, decisiva para a construção de
um novo futuro.
2. DORNELLES, João Ricardo
W. “50 anos depois ainda
vivemos o horror” In: Especial
50 anos do Golpe, Carta Capital,
06/04/2014.
3. SAFATLE, Vladimir; TELES,
Edson. “O que resta da ditaduraApresentação” In: O que resta
da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo: Boitempo, 2010.
Pag. 10.
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