Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 38

2.7. Maré: pacificação e/ou domesticação militarizada? Por Marielle Franco1 e Renata Souza2 O conjunto de favelas da Maré, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi ocupado em abril de 2014 por forças militares de pacificação como estratégia da Segurança Pública para a realização da Copa do Mundo. Uma engenhosa operação envolveu mais de dois mil homens do Exército, da Marinha, da Força Aérea, além das polícias Civil e Militar. O local, que tem uma população de cerca de 130 mil habitantes de acordo com o Censo do IBGE de 2010, entrelaça as principais vias da cidade como a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha, esta última leva ao aeroporto internacional. É inegável que há um imaginário social, articulado principalmente pelos meios de comunicação tradicionais, que o identifica como um lugar de extrema violência, miséria e banditismo. Tais estereótipos são enfatizados pelo Estado, que ao invés de estar ausente da Maré, como advoga o senso comum, se mantém na favela com forte aparato militar de repressão ao varejo do tráfico de drogas e, no tocante aos serviços públicos, se destaca por sua precariedade. Há uma militarização da vida na favela que remonta o autoritarismo no Brasil. Não por acaso, no ano em que o golpe militar completa 50 anos, mais de 80 civis, até a publicação deste artigo, foram autuados em flagrante ou receberam mandados de prisão sob a acusação de crimes militares na Maré. O número representa 20% do total de presos desde abril, muitos foram detidos por desacato, desobediência e lesão corporal, crimes praticados contra militares em serviço. Além disso, serão julgados pela Justiça Militar. A Maré está sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), medida constitucional que permite aos militares atuarem como força de Segurança Pública. Cabe ressaltar, que a prisão de civil por crime militar na Maré é prevista no artigo 9º (que trata de crimes militares em tempo de paz) do decreto-lei 1.001 de 21 de outubro de 1969, assinado pelo general Artur Costa e Silva, considerado o presidente da fase mais dura do regime militar, sucedido pelo general Emílio Garrastazu Médici. É neste contexto que os moradores das favelas que compõem a Maré convivem rotineiramente com as arbitrariedades de um Estado militarizado e as imposições dos grupos civis armados que disputam o território para a expansão do varejo do tráfico de drogas. Tal realidade impõem-se como um futuro de incertezas, já que no presente os moradores são reféns cativos tanto do Estado militarizado quanto dos grupos criminosos armados. Pacificação militarizada O processo de militarização é galgado pela política pública de Segurança estadual, em nome da “guerra às drogas”, e também pela apropriação de armas de fogo por parte de grupos civis que controlam inúmeras favelas. Isso significa que qualquer elucidação deve apostar em uma dupla avaliação. A militarização na favela é uma questão central, que se agudiza com a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) ou de forças militares. Tendo em vista que a ocupação territorial, além de inserir mais armas no cotidano comunitário, não visa necessariamente o combate ao tráfico de armas. Mesmo pressupondo uma diminuição da força armada desses grupos 1. Marielle Franco é ex-moradora do morro do Timbau (Maré) e mestre em Administração Pública pela UFF 2. Renata Souza é morada da favela Nova Holanda (Maré) e doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ 37