Relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da Alerj - 2014 | Page 26

desmilitarização, possam forjar consensos. Em outras palavras, sugerimos que se olharmos algumas de suas formulações à luz dos princípios que as orientam, talvez possamos produzir um consenso básico focado na produção de mudanças urgentes. Há, no mínimo, três princípios com tal rendimento. O primeiro deles é de natureza técnica e incide sobre propostas como a instauração do ciclo completo de polícia que, ao menos em tese, tornaria o trabalho policial mais eficaz. É evidente que tal suposição pode não se concretizar na prática, sobretudo se tivermos em mente que, em se tratando de um sistema, qualquer ação isolada depende da combinação de uma série de outras iniciativas para ter o efeito esperado. A mesma razão que nos levaria a suspeitar da eficácia dessa iniciativa pode e deve ser aventada para seu oposto: por que o ciclo completo não impactaria positivamente o trabalho policial? Afinal, ele implica necessariamente em redefinição de mandatos, responsabilidades e comprometimentos. Dado que lidamos com sérios problemas em rigorosamente todas as esferas do sistema de justiça criminal, por que não tentar medidas para redefini-lo como um todo? proteger, simultaneamente, os profissionais desse campo dos abusos institucionais de que são recorrentemente objeto. O controle externo evidentemente se volta para o profissional e seu desempenho, mas seu principal foco são as instituições. Embora a maior parte das atividades no sistema de justiça criminal (polícias, sobretudo) implique alguma dose de risco, é evidente que nas escolhas políticas que têm sido feitas sistematicamente no interior dos palácios de governo, a vida e a saúde desses profissionais são recorrentemente negligenciadas. Não à toa, em geral, o aumento de mortes perpetradas por agentes policiais está acompanhado pelo aumento da vitimização desses mesmos agentes, dentro ou fora do serviço. Não é de surpreender, como ensina Michael Walzer (2003), num contexto de guerra a vida do opositor não vale muito menos do que a vida do seu próprio soldado. A omissão desse dado tem preservado intacta uma parte das trincheiras dos defensores da lógica da guerra e da militarização da segurança pública: a negligência para com a vida humana em geral, a dos policiais, inclusive. As resistências observadas nas corporações policiais são mais do que compreensíveis. Todas as corporações são refratárias a mudanças. Essa não é uma exclusividade policial. Assumir que um princípio de natureza técnica, que tenha como condição a maior qualificação, responsabilidade e envolvimento dos profissionais de polícia não beneficia apenas os cidadãos que desejam legitimamente fruir da segurança como um bem próprio ao pacote de direitos civis que lhes cabem. As mudanças daí decorrentes tendem a ser benéficas também para o profissional de polícia a quem sistematicamente são negados reconhecimento e prestígio social. Esse último é um ponto pouco explorado. Temos, então, dois termos sob os quais pretendemos fundar um consenso mínimo sobre a importância de avançar em propostas de desmilitarização da segurança pública, nas condições sugeridas pela PEC 51. Os dois princípios, apenas para recapitular, são a admissão da natureza técnica do trabalho policial, que lhe é específica e, consequentemente, diferenciada de uma outra especialização, relativa à guerra, e a afirmação de seu componente político, que traz em si o reconhecimento de que se trata de um campo chave para afirmação de direitos e deveres cidadãos, incluídos aí os próprios profissionais de polícia. Temos, ainda, uma terceira dimensão, a saber, as implicações administrativas peculiares das instâncias de provimento de tão complexo serviço. Se o trabalho policial deve ser abordado como atividade altamente especializada, que implica elevado grau de responsabilização, não podemos negligenciar sua dimensão política. Esquecê-la equivale a, em certo sentido, amesquinhá-la. Embora observável em vários pontos da proposta, a dimensão política pode ser surpreendida de forma mais acentuada na proposta de criação de ouvidorias externas e independentes. Por sua criação, pretende-se não somente amparar o exercício do controle da sociedade sobre um campo de atuação do Estado, mas A importância de redimensionamento administrativo do sistema está explicitada na PEC 51, quando ela estabelece prerrogativas dos entes federados e as relaciona com prerrogativas igualmente inalienáveis da União. Quem conhece um pouco da história política brasileira sabe bem que a distribuição de poderes e responsabilidades políticas e administrativas entre os três níveis de institucionalidades estatais (Municípios, Estados e União) é um dos pontos mais polêmicos de nossa trajetória, desde os tempos imperiais. 25