Lusofonia Global
m Novembro de 2001 fiz um estágio na rádio alemã Deutsche Welle, em Colónia. As duas enormes e emblemáticas torres da estação de rádio e televisão eram o local trabalho de cerca de 2000 pessoas. Fui trabalhar para o programa em português para África. A redacção não era grande. Longe vão os tempos em que a onda curta da «Voz da Alemanha» transmitia regularmente para Portugal. Hoje, a prioridade é transmitir para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Nesses espaços verticais, a grande maioria era imigrante e emigrante. Logo na primeira noite, o chefe de redacção, um cabo-verdiano que reside há cerca de 15 anos em Colónia, convidou-me para jantar. Fomos a um restaurante português, numa noite de festa brasileira. Foi lá que conheci o Maximíno. São-tomense, assegurava o programa da manhã em sistema de rotatividade. Em pouco tempo ficámos amigos. Tínhamos muito em comum. Queixava-se do frio cortante do Inverno alemão, das saudades do seu país, amigos, família. Falávamos muitas vezes das nossas diferenças: as diferenças entre «nós» e os «outros», os alemães. Pela primeira vez percebi que a lusofonia poderia ser algo mais do que notícias vindas a público nos jornais ou na televisão em que se vêem homens bem vestidos a assinar protocolos de cooperação e promessa de melhores entendimentos. «Nós» e «eles». Nunca tinha pensado nisso. Nos dias que se seguiram comecei a perceber. Alberto trabalhava também na nossa redacção. Angolano, veio muito jovem para a Alemanha. Estudou economia na Universidade de Colónia e começou a trabalhar como consultor em diferentes partes do mundo. Se eu o ensinei a falar para um microfone, dizendo-lhe como direccionar a voz, Alberto ensinou-me muito mais do que isso. É natural de Luanda, cidade que recorda com saudade. Alberto sente-se em casa. Nasceu em Angola, cresceu na Ale-
E
Nós e eles
manha, viveu em Cabo Verde e Moçambique passou por São Tomé, trabalhou em Lisboa. Alberto é um cidadão do Mundo. Sente-se tão bem em Luanda como em Lisboa. «Há muitas coisas para ver neste mundo para que fiquemos sempre no mesmo sítio», dizia-me. Tornámo-nos bons amigos. A grande diferença de idade entre nós (eu tinha 24 anos e Alberto 69) não foi uma barreira. Unia-nos algo muito mais forte. Também Alberto acreditava que a língua é um factor de união. Talvez fosse isso a lusofonia. «Não a lusofonia política. Acredito na lusofonia espontânea, que surge natu-
ralmente das pessoas», dizia. Eu, Maximíno e Alberto saímos muitas vezes juntos. Jantávamos num restaurante português (que de dia era a cantina do matadouro), comíamos bacalhau, bebíamos vinho português, falávamos da Europa, de África, das américas. Éramos bem tratados. Todos por igual. Afinal, éramos a mesma gente. Falávamos a mesma língua, gostávamos da mesma comida, ouvíamos a mesma música. Estávamos em pé de igualdade. Éramos os três estrangeiros, vivíamos no mesmo país, trabalhávamos no mesmo sítio. Eu, como Alberto e Maximíno éramos imigrantes. Frequentávamos cervejarias alemãs,
«pubs» irlandeses, churrasqueiras argentinas, restaurantes turcos. Acabávamos quase sempre a noite em discotecas africanas. Também aí continuávamos a ser «nós» e «eles». As diferenças marcavam-se na língua, não na cor da pele. Estelina é brasileira. Trabalha na redacção brasileira da DW. Há mais de vinte anos que faz parte da redacção. Gosta da Alemanha mas não esquece nunca «o seu Brasil». Convidou-me para jantar em sua casa. Fez bacalhau. Queria a aprovação de um português. Lembro-me que estava realmente bom. «Um português dizendo bem de um prato de bacalhau feito por mim? Pôxa! Deve estar mesmo bom», dizia, rindo. Passamos a andar muito tempo juntos. Apresentoume os amigos, portugueses, brasileiros, turcos, alemães, cabo-verdianos. Vivia bem em Colónia, embora se sentisse muito desenraizada. O sotaque não escondia a sua origem. Pelo menos para alguns. «Pedro, você sabe o que me aconteceu a última vez que fui ao Brasil?», perguntou. «Estava a almoçar com colegas num restaurante. Começamos a conversar com uns brasileiros da mesa do lado. Pouco depois, perguntaram-me de onde eu era. Brasília, disse-lhes. Não acreditavam. “Você é mesmo brasileira? Não parece…”». Estelina estava triste. Como o «Estrangeiro» de Camus, naquele momento não pertencia a lado nenhum. «Sou estrangeira dentro e fora do meu país», dizia de olhos no chão. Normalmente, juntava-se a nós Jasminka, jornalista macedónia que também trabalhava na DW. Achava bonito que gente aparentemente tão diferente, vindos de países tão distantes, se entendesse tão bem. «A vossa cultura é a mesma?», perguntou um dia. «Não», respondi. Mas a língua é. Para o bem e para o mal, vários séculos de colonização uniam-nos para sempre através da língua ?[H]X[]Y\?\?H?][???Y???]?\???p?^?\????